sábado, 3 de dezembro de 2011

Estou velho... que bom! (não é um texto meu)



Às vezes recebo textos muito bonitos, pena que não assinados. Esse veio pelo e-mail, enviado por minha sogra. É sobre ficar velho. Gostei muito e por isso posto aqui. Tomo a liberdade de ajustar um pouco aqui e ali, mas sem macular a essência do autor anônimo.

Segue:

"Eu nunca trocaria meus amigos surpreendentes, minha vida maravilhosa e minha amada família por menos cabelo branco ou uma barriga mais lisa.

Enquanto fui envelhecendo, tornei-me mais amável e menos crítico de mim. Tornei-me meu próprio amigo.

Eu não me censuro por comer biscoitos extras, ou por não fazer minha cama, ou para a compra de algo bobo que eu não precisava, como aquela escultura de cimento que parece tão “avant garde” no meu pátio.

Eu tenho direito de ser desarrumado, extravagante.

Vi muitos amigos deixarem este mundo cedo demais, antes de compreenderem a grande liberdade que vem com o envelhecimento.

Quem vai me censurar se resolvo ficar lendo ou jogar no computador até as quatro horas e dormir até meio-dia? 

Eu dançarei ao som daqueles sucessos maravilhosos dos anos 60 e 70 e se, ao mesmo tempo, desejar chorar por um amor perdido... Eu choro.

Vou andar na praia em um short esticado sobre um corpo decadente e mergulhar nas ondas com abandono se quiser, apesar dos olhares penalizados dos outros.

Eles também vão envelhecer.
Eu sei que eu sou às vezes meio esquecido, mas há algumas coisas que devem ser esquecidas. Eu me recordo das importantes.

Claro, ao longo dos anos meu coração foi quebrado.

Como não pode ser de quebrar o coração quando se vai um ente querido ou quando uma criança sofre ou quando algum animal de estimação é atropelado e morre?

Corações partidos são os que dão força, compreensão e compaixão. Coração que nunca sofreu é estéril e nunca conhecerá a alegria de ser imperfeito.

Eu sou abençoado por ter vivido o suficiente para ter cabelos brancos e ter os risos da juventude gravados para sempre em sulcos profundos no rosto.

Muitos nunca riram direito, muitos morreram antes de seus cabelos virarem prata.

Conforme se envelhece, fica mais fácil ser positivo. A gente se preocupa menos com o que os outros pensam.

Eu não me questiono mais. Ganhei o direito de estar errado.

Eu gosto de estar velho.  Eu gosto da pessoa que me tornei. Eu não vou viver para sempre, mas enquanto eu ainda estou por aqui, não vou perder tempo lamentando o que poderia ter sido ou me preocupar com o que será.

E vou comer sobremesa todo dia, se me der vontade."

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Eu não sou mim. Mim não sou eu.



Quem são os egos, quem somos?
Somos egos inflados, alterados. A luta contra o ego faz-nos andar em estradas menos tortuosas e respirar ares mais límpidos. O ego é projeção da mente, essa moça que ao invés de estar a nosso serviço, gosta de ditar regras. Atenção, pois: o que pensas não é o que és. A tua opinião e vontade de sobressair-te não é mesmo uma vontade tua. Os que, como eu, aparecem sem querer, falam sem saber e escrevem sem porquês, o fazem porque simplesmente foram produzidos de muitas formas para tais coisas.
Muitas vezes questionei o ego, busquei nele culpa por ser assim, falante, choroso e risonho, envolvido com tantos. Descobri que quem buscava esse ego não era eu. Descobri que minha mente, aprendiz da vida, dos conceitos, preconceitos, histórias e palavras, é quem quer tudo saber.
Em silêncio, porque o barulho não faz bem e o bem não faz barulho, descobri, num pequeno salto, que todo esse ruído, todas as perguntas e todas as respostas são da mente, feita para fazer isso, para viajar no tempo e procurar respostas que não precisam existir.
Isso eu descobri no silêncio. Uso a mente, aqui, para expressar que no silêncio pude ver que nada sou eu, nada é feito pelo meu eu. Eu não sou mim e mim não sou eu, como diz Rita Lee.
Descobri que não posso me criticar, nem me recolher, nem me esconder. Descobri que faço o que faço porque assim estou, assim funciona uma mente que aprendeu a ser assim e só a silencio, agora, se quiser e puder. E nem sempre quero, deixo. E nem sempre posso, perco.
Descobri eu sou minha essência e essa é inacessível. Está quieta, guardada nos espaços e nos silêncios entre essas palavras, entre a sístole e a diástole, entre o inspirar e expirar. Ali estou eu. Ali está quem observa tudo e apenas sorri quieto, sem barulho, porque o resto é mente, é ego, é resultado do que foi feito de mim, para eu viver no mundo manifesto. Olho, observo, sorrio e aprendo, devagar, a controlar esse órgão que acha que está no controle.
Por isso permito que ela, a mente, me sirva e me faça fazer o que faço. E me faça sorrir e fazer rir. E me faça abraçar, recordar, chorar e ser. E mais não pode fazer, porque, no silêncio dos intervalos, eu, aqui, quieto, digo à mente que aqui escreve: o que está entre as palavras é quem sou eu. O resto é mim. E eu não sei o que sou. Porque apenas observo, não sou observado, apenas respiro e aprecio o silêncio que cultivo entre as peripécias da mente. E me divirto também com ela. E vivo nos intervalos. Sem saber quem sou eu. Ou quem é mim.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Coisas que fazem a cara da gente esquentar



Essa figura aí é do AMIGO DA ONÇA, famoso personagem criado pelo pernambucano Péricles e que teve sua primeira tirinha publicada em 1943 na extinta revista O CRUZEIRO.

Personagem engraçado, colocava seus amigos em roubadas dignas de verbete de enciclopédia. Pois é nesse sujeito que penso quando assisto a atuação de muitos dos amigos do atual governo. Eles veem se esforçando para copiar a criação do Péricles, mas, infelizmente, não conseguem obter a mínima graça. Aliás, a coisa está mais para tragédia.

O tal ministro do trabalho, com a cara mais esquisita e sem graça do mundo, tenta mostrar ao Brasil que é inocente, que não voou em avião particular algum, nem que tem qualquer relação (que depois disse ser pessoal) com o empresário dono da ONG que licitou de formas estranhas junto a seu ministério.

Dia 10 de novembro ele falou coisas com convicção e força, fez caretas, bravateou à vontade, se disse  pesadão, vulnerável apenas à bala e bala de calibre pesado. Disse que o partido pagou a viagem e o partido negou.

Tomou alguns pitos e apareceu pública e pateticamente pedindo desculpas à presidente, dizendo que a amava.

Tomou mais alguns pitos e voltou, convocado,ao Senado para esclarecimentos. Estampou, agora, uma cara de pena aos Senadores, fez menos caretas e disse ter se enganado aqui e ali.  O Senador Alvaro Dias sugeriu que pedisse perdão ao povo por ter mentido. Saia justa.

Que festival patético. Que sequência de coisas inacreditáveis. E, pela primeira vez, que falta de auto-estima, para não dizer o mínimo.

Outros ministros, demitidos, provavelmente serão processados por improbidade administrativa, o que deverá também ocorrer com esse Lupi. Só que esse é o primeiro que demonstra um apego tão ferrenho à sua pasta. Parece desesperado por não perder o emprego! Pelo menos é esta a impressão que causa nesse escriba.

O do esporte se disse invencível e despencou depressinha. Esse se disse "pesadão" e talvez demore mais um pouquinho para cair, até porque um "pesadão" quando cai abala estruturas. E o pior: a pasta é do partido dele, do PDT. E ele é o presidente afastado do partido. Belo enrosco essa "base aliada da governabilidade" está provocando.

Não tenho absolutamente nada contra nem a favor de partido algum, até porque, na juventude filiei-me ao PSB e nem sei se ainda estou nele, nunca exerci nada eleitoreiro na vida, preferindo enveredar-me por caminhos bem distantes de política partidária.

Só que, diante de tantos fatos, estampados e notórios, de desvio, improbidade e falta de senso público, vejo alguns virem a público dizer que tudo é uma sórdida campanha ou da grande imprensa ou das elites ou sei lá de qual fantasma, para desmoralizar uma tal era. Estranho isso. Se a imprensa fala, é golpista. Se não fala, é conivente.

Desculpem-me, mas com amigos desse jeito, do porte desses ministros que caem um a um, o Governo da tal era não precisa, mesmo, de inimigos, nem na grande, nem na pequena imprensa, nem em lugar algum.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Tietagem



Acho que entendo a tietagem, exceto o desespero de algumas fãs quando chegam perto de seus efêmeros  ídolos. Mas entendo a tietagem.

É interessante ficar próximo, passar perto ou ver, mesmo de longe, alguém que você lê assiduamente, ouve no rádio ou vê na TV. É curioso, no mínimo.

E quando o famoso que a gente vê é também alvo de nossa mais genuína admiração pelo seu trabalho? É bem marcante.

Confesso que, apesar da minha notória expressividade (quem me conhece sabe do que estou falando), sou um tímido sem conserto. Muitas vezes me pego sem saber onde colocar as mãos quando estou perto de algum famoso, especialmente quando ele ou ela é, mesmo, uma celebridade por seus feitos e não apenas uma coisa fabricada. Mesmo perto destas já fico desconsertado, que dirá daquelas.


Não foram muitas as vezes que conversei com celebridades. Para um cara de cinquenta anos, dez deles dedicados ao rádio, teatro e jornalismo, minha atitude diante de celebridades é sempre um embaraço. Por isso a imensa vontade de estar perto e a maior ainda vergonha de encher a paciência deles.

Tenho receio de provocar no alvo de minha admiração algum tipo de reação hostil, perfeitamente possível. Afinal, são seres que, apesar da fama e do talento, respiram o mesmo ar que nós, anônimos.

Acho que tenho mais receio de minha própria reação à eventual hostilidade. Ela poderá ser um misto de tristeza e rejeição, misto que me levará ao abandono de toda admiração, trocada que seria por uma até aversão.

Como não quero incomodar pessoas potencialmente incomodáveis e nem colocar em risco minhas admirações, fico no meu canto e procuro mostrar à celebridade que porventura esteja próximo de mim, sentada na poltrona ao lado, no avião ou no banco do aeroporto, que ela pode ficar à vontade, não vou
"agredi-la" com papo furado.

Só por curiosidade, relaciono aqui celebridades de diversos ramos, com as quais interagi por força do trabalho ou pelo menos passei perto um dia, mas que me causaram algum tipo de emoção.

Políticos:
Magalhães Pinto, Aureliano Chaves, Itamar Franco, José Sarney, Antônio Carlos Magalhães, Rafael de Almeida Magalhães, Paulo Brossard, José Bonifácio Lafayette de Andrada. São poucos, graças a Deus, alguns até jáse  foram, menos o Sarney. Ah, e Marina Silva, Hélio Costa e Luiza Erundina.

Sumidades:
Emeric Marcier (pintor romeno com quem conversei um dia), Sobral Pinto (jurista histórico nascido em minha terra que um dia entrevistei), Mário Cortella (escritor e filósofo, fui seu aluno na GV), Bia Lessa (diretora de Teatro, fui dirigido por ela em uma peça do Ponto de Partida), Carlos Castelo Branco (jornalista falecido que tive a oportunidade de entrevistar), Pasquale Cipro Neto (assisti a algumas palestras dele), Maurício de Sousa (o pai da Mônica).

Músicos:
Elba Ramalho (um interessante papo sobre vitaminas, acreditam?), Vermelho (conterrâneo, membro do 14 Bis), Léo Jaime (entrevistei e perdi a fita), Gal Costa (entrevistei ao acaso em São João del Rei), Angelo Máximo (um bom bate papo recentemente na TV Bandeirantes), RPM (apresentei o grupo uma vez, em pleno auge), Yergi Shurbak (maestro da Sinfônica de Varsóvia, entrevistei), Jerry Adriani, Lenine, Carlos Dafé (apresentei um show dele), Picolino da Portela (apresentei seu show com suas mulatas, que nem abriam a boca, mas também pra quê?), Christian e Ralf (apresentei seu show), Bebeto (aquele que parecia o Jorge Benjor, apresentei um show dele), Simone (eu a vi num show em Barbacena, em 1979 , quando abandonou o palco alegando vaias que não ouvi), Nalva Aguiar (apresentei um show dela e quase roubei seu chapéu), Oswaldo Montenegro (viajei com o mesmo e assisti seu show no MPB-Shell), Guilherme Arantes, Lucinha Lins, Ivan Lins (não sei se devia colocá-los tão perto aqui, mas a memória é assim mesmo), Emílio Santiago, Nelson Ned, Wilson Simonal (que show, que suingue tinha esse sujeito), Jorge Benjor (muito bom), Baby do Brasil, Tunai (entrevistei), João Bosco (vi seu show), Jards Macalé, Zeca Pagodinho, Sérgio Reis (entrrevistei-o em pleno show, um cara mais do que simples e que show legal), Sidney Magal (no auge da carreira, ainda jovem, só não pedi pra rebolar, aí seria um abuso para minha paciência).

Atores e apresentadores:
Milton Gonçalves, Denis Carvalho, Lauro Corona, Nathália Timberg, Paulo Goulart e Nicete Bruno (conversei com eles em convenção da empresa), Raul Gil, Oswaldo Bettio (radialista da Record, frequenta a mesma academia que eu), Sílvio Santos, Chacrinha (esses lá longe), Nair Belo (viajei com ela na ponte aérea, uma simpatia), Maitê Proença (essa veio do meu lado e nem...), Ivete Sangalo (quando era ainda meio pobre e ainda viajava em avião de carreira), Fernanda Lima (pessoa simples, altos papos sobre seus meninos), Marcelo Costa (locutor e cantor sertanejo, apresentei um show dele, que arrependimento), Luiz Ayrão (apresentei um show dele e ele quase me empurrou palco abaixo), Luiz Gonzaga (esse só de longe), Paulo Storani (o inspirador do capitão Nascimento do BOPE, fiz uma foto com ele), Paulo Gracindo (já falecido, mas emprestei um gravador para sua peça na minha cidade, espero não emprestar mais nada, prefiro ficar vivo mesmo), Zora Yonara (sim, apresentadora de horóscopo), Belchior, Saulo Laranjeira (entrevistei), Derci Gonçalves (nossa, isso é uma confissão absurda de idade avançada, mas ela já era velha), Orival Pessini (o Fofão), Adriane Galisteu, Simony (quando menina ainda, no Balão Mágico).

NOTA: No dia em que entrevistei a Simony, na rádio em Barbacena, estava, no ônibus lá fora, o famoso assaltante do trem pagador da Inglaterra, Ronald Biggs, pai do Mike, um dos componentes do Balão. Minha timidez não permitiu falar com ele.

E ainda: Max Gehringer (agora é apresentador, conversei com ele na empresa), Heródoto Barbeiro (jornalista e professor, falei com ele em uma palestra, puxei saco levando seu livro para um autógrafo).

Esportistas:
Oscar, Bernardinho e Lars Grael (assisti suas palestras e arrisquei um papo), Hollyfied baiano (lutador de boxe), Túlio Maravilha (ex-Botafogo e Goiás), Falcão do Futsal (esse eu me arrisquei e tirei uma foto com ele, pois estava de ótimo humor, ele, não eu),  Nuno Cobra (meio esquisito, mas legal).

Que estranho, consegui me lembrar de quase todos os famosos que um dia vi de perto. Sinal de que, de uma forma ou de outra, a passagem deles perto de mim deixou algum tipo de marca.

Por isso digo que entendo a tietagem.

Todo mundo, de alguma maneira, tieta alguém, o que não me permite defender ataques histéricos e desmaios de meninas que se descabelam e passam fome para ver um menino quase impúbere chamado Justin. Fico com pena dos pais delas. É muita vergonha que dá., mas isso não é novo, os Beatles provocavam isso nas avós delas.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Tudo, menos parar de rir.



Há um ditado que diz que rir de tudo é desespero. Aliás, esse adágio está numa música do Frejat. Falam por aí que só os humanos riem, mas desconfio que minha cachorra ri de vez em quando.

O formato da cara dos golfinhos denuncia um sorriso que os biólogos afirmam não existir, mas teimo em achar que é real, deduzindo o jeito como interagem, inclusive conosco.

Nem vou falar de uivos, gorjeios, grunhidos e ronronares, porque logo aparecerá um explicando que são provocados por fome, necessidade de acasalamento, frio, medo, tudo, menos felicidade.

Nós, humanos, somos metidos à besta, sem trocadilho. Achamos que Deus nos fez à Sua imagem, que Deus fala através de nossas palavras escritas em papiros, que Deus se ofende com nossas coisas e que Deus só permitiu o riso a nós.

Se um dia me pegarem fuxicando num formigueiro com um estetoscópio, não me internem; provavelmente estarei tentando ouvir a risada de milhares de formigas. E como deve ser divertido.

Entendo a letra do Frejat. Rir sem parar é insanidade. Os casos de desvio de nosso dinheiro não têm a menor graça. Os crimes que se repetem, impunemente, tampouco.

No entanto, continuamos respirando. É nesse sentido que defendo que rir é tão fundamental quanto respirar e nada tem a ver com falta de seriedade. A cara séria de todos os ministros defenestrados pela Presidente nos mostra como atitudes nada sérias podem ser estampadas em caras sisudas.

Rir é uma atividade fisiológica despertada pela sensação instantânea de prazer, de felicidade, de graça, do inusitado e de tudo o que nos remete à infância, à molecagem sadia, à bobeira adolescente. Rir libera endorfina e relaxa.

Uma gargalhada demorada acalma que é um absurdo. Rir até cansa, dizem alguns. Não é cansaço, é um relaxamento que melhora todas as funções orgânicas e nos devolve o sono roubado pelas aflições.

Isso é tão verdade que o mercado de humor anda de vento em popa. Quantos pagam para dar algumas risadas, nem que seja da desgraça e dos defeitos alheios? O humor negro é um sinal de que algo não vai bem, pois não faz muito sentido rir da miséria de outrem.

Quando pequeno, por volta dos dez anos, fiz amizade com uma trupe de circo. Todo o aparato mambembe cabia em um velho e pequeno caminhão, dirigido pelo dono. Na boleia ia a esposa e atrás, numa cabine de lona, seguiam os dois jovens filhos. Nada de bichos. A trupe só visitava pequenas cidades de três a cinco mil habitantes, provavelmente porque ali estava o público mais carente de novidades, onde a televisão não chegava muito bem (lá, na cidade a qual me refiro, era péssima, naqueles anos setenta).

A família-trupe erguia sua lona nos arredores e foi numa dessas cidades que pude vê-los montar e desmontar o "espetáculo", almoçar com eles, vê-los à paisana.

À noite, custava-me acreditar que o casal em cena, rosto branco de tanta maquiagem, sob luzes montadas em velhos tripés, era o mesmo que martelava arquibancadas, fazia o almoço, lavava as roupas e as louças. A voz de ambos era forte, estridente, límpida. O ritmo e a marcação de cena, impecáveis. As anedotas engraçadas e inocentes.

O texto, limpo feito água, narrava a rotina de um casal atrapalhado do interior, bem estereotipado. Era disso que a gente gostava. E o povo ria daquelas simplicidades, daqueles trocadilhos que se insinuavam maliciosos, mas passavam longe de qualquer maldade. Eu absorvia cada palavra, cada tirada, cada entrada e saída de cena, hipnotizado.

Depois do humor, a filha do casal, vestida de índia, se apresentava. Vinha toda maquiada para cantar sobre cacos de vidro e brasas acesas, para espanto de todos (até hoje não sei se aquilo era mesmo real). Meus olhos não conseguiam se desprender daquela imagem de moça morena, cabelos pretos, longos, que depois me lembrariam os de Iracema, a Virgem dos Lábios de Mel de José de Alencar.

O filho do casal, um jovem alto e magro que emprestava seu nome ao circo, não carregava o talento cênico dos pais, mas cumpria da melhor forma que podia seu papel, fazendo algumas mágicas interessantes e engolindo fogo.

Todos ali eram atores, palhaços, malabaristas, engolidores de fogo, mágicos, caminhantes sobre vidro, cozinheiros, motoristas, lavadeiros, passadeiros, brasileiros, sofredores e... engraçados.

Riam o dia todo trabalhando para o espetáculo. À noite faziam rir a pequena plateia de, quem sabe, vinte ou trinta por sessão, a cinco cruzeiros o ingresso. A preço de hoje, uns dois reais.  Eu, lógico, amigo deles, entrava de graça e isso me dava um orgulho lascado. Assistia o espetáculo diversas vezes, para rir das mesmas coisas, tudo igualzinho, sem tirar nem por. Para compensar, ajudava na divulgação.

Hoje, quarenta anos e muitos espetáculos diferentes depois, continuo me lembrando da missão daquela família simples, humilde, talentosa e sorridente, que vivia rindo e fazendo os outros rirem, levando alegria genuína àquelas paragens onde só a simplicidade existia.

Ali tudo era singelo: a comida, a bebida, o futebol, a religião, a política, os romances, a rotina, a linguagem, a dor e o sofrer. Mas lá estava, no meio de tudo, o rir e o fazer rir. Uma necessidade tão velha e simples como comer e dormir.

Toca um saxofone...

Meu amigo Zé Rural, ou Tarcísio Santos, sei lá, resolveu comprar um saxofone. Nunca cantou nada e de música só conhece o Hino Nacional porque as pessoas ficam de pé na hora em que é executado. Mesmo assim, resolveu comprar por uma grana importante um saxofone para aprender música. Logo um saxofone, instrumento complexo, que para ser utilizado precisa de um belo acompanhamento ou então, em solo isolado, exige de seu executor uma perícia digna de Kenny G. ou Leo Gandelman.

Mesmo assim, essa criatura se arrisca a aprender e nos mostra, nesse vídeo, o que já sabe. Na linha do fazer rir de forma despretensiosa, o que consegui com esse vídeo foi dar muita risada e fazer meus amigos rirem também. É uma bobeira inocente, divertida.

Dois caras aos cinquenta anos, pais de família, morando há 550 km um do outro, amigos há 33 anos, que quando se encontram parecem dois adolescentes da década de 70, com uma intensa camada de humor sem pretensão a não ser fazer rir um pouco.

Não é necessário muito pra fazer rir

Ás vezes uma bobagem, uma coisa simples, até ingênua, pode fazer a gente rir. Quem não gosta de rir sem saber por que está dando risada? É assim, de um jeito aparentemente bobo, que gosto de rir e fazer rir. Não precisa ser muito culto, nem muito estudado, para rir. Rir é um direito de todos e torná-lo universal e sem excentricidades é uma de minhas bandeiras. Aí está o Tarcísio Santos, dono do personagem Zé Rural, que vai ao ar todo dia na FM Sucesso de Barbacena, 101,7 e no site da rádio http://www.radiosucesso.com.br/ . Ele também pode ser lido no seu blog, http://www.bomdiaze.blogspot.com/ . Por algum tempo, atuou com o Nerso da Capitinga no Zorra Total, na TV Globo. É um palhaço mesmo. Convivo com ele e sua família há mais de 30 anos e sempre provocamos muita risada em nossos amigos. Resolvi compartilhar.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Texto que recebi por EMAIL... Excelente. Não é de minha autoria.



DESABAFO

Na fila do supermercado, o caixa diz a uma senhora bem idosa que ela deveria trazer suas próprias sacolas para as compras, uma vez que sacos de plástico não são adequados para o meio ambiente, pois isso é a onda verde de nosso tempo.

A senhora pediu desculpas e disse que não havia essa onda verde no tempo dela, mas que sempre usou as famosas "sacas" de papelão ou de plástico durável. Parou porque os mercados passaram a oferecer sacolinhas e as "sacas" sumiram. E não quis mais (como diz a minha neta?) pagar "mico".

O empregado respondeu: "Esse é exatamente o nosso problema hoje, minha senhora. Sua geração não se preocupou o suficiente com  nosso meio ambiente e agora temos de racionar tudo."

- Hum, acho que isso veio um pouquinho depois da minha geração, mas que bom, você me acha mais nova... de qualquer jeito,  acho que você está certo, nossa geração não se preocupou com o meio ambiente. Na minha época, as garrafas de leite, refrigerante e cerveja eram devolvidos à loja, que as mandavam de volta para a fábrica, onde eram lavadas e esterilizadas antes de cada reuso, e eles, os fabricantes de bebidas, usavam as garrafas umas tantas outras vezes."

"Realmente não nos preocupamos com o meio ambiente no nosso tempo. Subíamos escadas porque não havia tantas escadas rolantes nas lojas e nos escritórios. Caminhávamos até o comércio, ao invés de usar um carro toda vez que precisássemos andar dois quarteirões.

Realmente, você está certo... nós não nos preocupávamos com o meio ambiente. Até então, as fraldas de bebês eram lavadas, porque não existiam fraldas descartáveis. A secagem das roupas era feita por nós mesmos, não por estas máquinas bamboleantes barulhentas. Os meninos pequenos usavam as roupas que tinham sido de seus irmãos mais velhos e não roupas sempre novas, de grife.

É verdade...não havia preocupação com o meio ambiente naqueles dias. A gente só tinha, quando muito, uma TV e um rádio em casa e não uma TV em cada quarto e uma montoeira de aparelhos. E a TV tinha uma tela do tamanho de uma janelinha, não do tamanho de um estádio. Aliás, como será descartado?

Na cozinha, tínhamos que bater tudo com as mãos porque não existiam tantas máquinas elétricas que hoje fazem tudo por nós. Quando embalávamos algo um pouco frágil para o correio, usávamos jornal amassado como proteção, não esse plástico bolha que dura anos novinho.

Naqueles tempos não se usava um motor a gasolina para cortar grama. Usávamos um cortador de grama que exigia força da gente mesmo. O exercício era muito bom e não precisávamos ir a uma academia para usar esteiras que também funcionam com eletricidade.

Não havia mesmo naquela época preocupação com o meio ambiente. Bebíamos diretamente da bica quando estávamos com sede, em vez de usar copos plásticos e garrafas pet que vocês dizem que estão lotando os mares. E as canetas? As recarregávamos com tinta umas tantas vezes antes de comprar outra. Usávamos navalhas ao invés de jogar fora os aparelhos só porque a lâmina ficou sem corte. Que coisa, que mania de economia.

Naqueles dias, as pessoas tomavam o bonde ou o ônibus e os meninos iam em suas bicicletas ou a pé para a escola, ao invés de usar a mãe como serviço de táxi 24 horas. Tínhamos só uma tomada em cada quarto e não um quadro de tomadas em cada parede para alimentar uma dúzia de aparelhos. E nós não precisávamos desse tal de GPS para receber informação de uma coisa lá em cima, longe, no espaço, para encontrar a pizzaria aqui do lado de casa.
Vocês, das últimas gerações, não abrem mais mão desses confortos, tá certo, mas gostam de falar que fomos nós, os mais velhos, que estragamos tudo. Sei não. Esses futurismos vieram depois do meu tempo. Na minha época, tudo era mais romântico. Não me culpe, meu filho, por essas coisas não. "Me deixa" viver o restinho de vida que eu tenho em paz, para que eu possa morrer seu carregar comigo esse peso".

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

DIÁLOGO PARA NADA

 - O que mata é a expectativa.
 - Já eu acho que o que mata é o preconceito.
- Que nada. Vocês ainda não viram o que uma boa auto-comiseração pode fazer.
- O que mata, no fim de tudo, é só a expectativa.
 - Sei lá.
- Eu posso explicar.
- Vá em frente, guru. Não temos nada pra fazer mesmo.
- Você acha que as coisas deveriam ser como gostaria que fossem, mas nunca são. Isso é  preconceito. Você tem uma forma de ver e desejar que pessoas, coisas e comportamentos sejam como você espera. E o que é isso se não uma boa dose de expectativa?
- E a auto-comiseração? Essa mata e não tem muito a ver com preconceito...
- A auto-comiseração corroi porque você não se julga tão bom como esperava ser... tem a ver com expectativa.
- Mas nada com preconceito.
- Claro que sim... você cresceu e condicionou-se a crenças, que, mesmo não as aceitando totalmente, estão impregnadas. E quando num balanco parcial, você se vê menos forte, menos bonito, menos inteligente e menos corajoso do que projetou, vem aquela pena de si mesmo. Você tem preconceito contra o que você se tornou, de tão forte foi o impregnado. Você não atingiu toda a meta.
 - Vou ter preconceito de mim mesmo?
- Lógico, esse treco é forte.
- Que eu posso ter expectativas frustradas quanto a mim, isso eu já sabia, mas preconceito de mim...
- E aí entra a auto-comiseração... ou não, nem precisa disso, basta a sensação de menos-valia. Se você não consegue nem se aceitar, não venha me enganar dizendo que aceita os que ficam aquém de suas expectativas... e isso vale para seus amores,  pais, filhos, irmãos, professores...
- Perdoar, então, não existe...
 - Claro que não. O que há é uma tentativa civilizada de conciliação para que a vida em comum exista.
- Repito: o que mata é a expectativa. Se você não espera nada, não haverá sofrimento.
- E a auto-comiseração? Como fica nisso tudo?
- É só não esperar nada de você.
 - Mas é dificil, a gente sempre quer algo... assim a vida anda.
- E assim a vida para. O que mata é a expectativa.
Esses bichos... mais no www.youtube.com.br/jrattademo

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

O SOM DO ALCEU, O MÁRIO E AS LEMBRANÇAS

Houve um tempo em que as coisas estavam pretas. Não digo isso revirando apenas a minha história, mas minha história num contexto em que quase ninguém tinha dinheiro para quase nada. Quase ninguém.
Era um período de recessão acompanhada de inflação. Sim, senhores economistas, um paradoxo. Foi nessa época que comecei a trabalhar.
Para fazer um salário mínimo, um trabalhador feito eu, aos dezesseis anos, precisava juntar as migalhas que ganhava ora na rádio, ora no jornal, ora tudo isso junto e ora...  fazendo som.
É sobre isso que vou falar. Não era aquele som que muitos já faziam, tipo mistura de DJ com animador de festinha. O som era da pesada.  Nada de heavy metal, para isso eu não tinha iniciação, o que eu fazia era sonorização de eventos. Tinha palco à noite, música de dia, propaganda o tempo todo e locução a mais não poder.
A empresa era pequena, de um amigo que vendera tudo para montar sua equipe de som. Fora dono de boate e de conjunto, que hoje chamam “banda”. Exímio baterista. Chegou a gravar um LP ou fazer parte de um, não sei bem. O nome do meu amigo: Alceu. E da banda: “Os Intocáveis”.
Na época da banda eu ainda era muito jovem e achava que esse nome era uma homenagem à  capacidade do grupo em não tocar coisa alguma, o que depois comprovei não ser verdade, pois tocavam bem. O nome significava outra coisa.
Alceu, depois de empreender pela noite e pela música, resolveu usar seu talento para criar uma equipe de som, a que deu o nome de “Amplisound”, onde trabalhavam outros que merecem capítulos  à parte sobre as confusões involuntárias que aprontavam.
O som tinha mais de trezentas caixas, uma pilha de amplificadores, um monte de cabeçotes valvulados para amplificar as caixas de palco, além de instrumentos de toda sorte e quilômetros de fio embolado.
Em sua casa Alceu montou dois estúdios, onde gravávamos horas e horas de propaganda que rodavam nos eventos.
O som tinha um ônibus que merece um livro, uma Kombi que pegou fogo algumas vezes e uma caminhonete que até me serviu de cama no frio da Serra da Mantiqueira. Tudo era usado como estúdio, casa, refeitório e inclusive meio de transporte.
Alceu era o diretor, dono e motorista. Eu era o locutor que subia no palco, operava o equipamento durante o dia, ligava e desligava tudo, gravava os comerciais e, algumas vezes, viabilizava a venda dos anúncios para os fazendeiros e expositores das feiras.
Dependendo do evento, usávamos o ônibus e as trezentas caixas ou a camionete e meia dúzia de caixinhas ou a Kombi e algum equipamento complementar. O Amplisound fazia sucesso sonorizando feiras agropecuárias, concursos leiteiros, aniversários de cidade, natais, cavalhadas, congados, rodeios e similares. Num mesmo dia, eu narrava de um rodeio a uma efeméride religiosa.
E como comíamos mal! Nosso cardápio se resumia a churrasquinhos de gato de barraquinha com fanta laranja.
São muitas as histórias que podem ser contadas, desde a da vaca leiteira que comeu tanto que empanzinou e teve de ser operada ali mesmo, em plena exposição, tendo sido retirado dela um morro de capim, até os banhos que tomávamos em uma caixinha de madeira de um metro quadrado, no meio das estrelas da exposição, as donas vacas. Isso sem falar na semana inteira que passamos sonorizando uma feira em Perdões, em um parque sem água. E sem banho.
E ainda nem falei do dia em que chegamos a Campo Belo: um vendaval havia destruído todo o parque de exposições. Não havia nada em pé. Dormimos no ônibus e pela manhã montamos tudo. E teve exposição. Com água.
Alceu tinha uma cabeleira que, em meio a poeirada e à falta d´água, ficava parecendo, como ele mesmo dizia, corda de bacalhau. Os ajudantes, Bolão e Cabeção (que nomes) eram umas peças. Cabeção meio distraído, Bolão distraído e meio.
Quando as vacas estavam magras, na falta de exposições agropecuárias (nunca uma expressão popular teve tanta aplicação como aqui) o criativo Alceu inventava um jeito de “operar” a praça.
Usando a Kombi e um praticável, fazíamos shows infanto-juvenis.  
Alceu mandou fazer uns bonecos de pelúcia cabeçudos para a gente entrar neles e brincar com as crianças (e às vezes apanhar delas).  Não me perguntem que personagens representávamos, pois os bonecos eram desconhecidos. Bem feitinhos, mas quentes que só o diabo. Isso sem falar no cheirão de mofo que iam adquirindo.  Muitas vezes tive de me vestir de palhaço usando uma fantasia feita para um cara com a metade do meu peso.
E é aqui entra o que quero contar: a história do Mário. Todos os personagens das histórias do “som do Alceu” merecem citações, mas o Mário é especial. Eu ainda não o conhecia bem, a não ser como vitrinista de uma famosa loja de tecidos e como figura imprescindível nos desfiles das escolas de samba. Sempre aparecia enfiado em umas fantasias engraçadas, concebidas por ele, como a do palhaço gordo, imenso, que se balançava quando ele sambava.
Bem mais velho que nós, negro e solitário, Mário era uma figura que só convivendo pra entender.
Certo dia, eu transmitia um evento  sonorizado pela trupe do Alceu. Do nada, subiu ao palco uma velha cantando “Marvada Pinga” em alta rotação. A velha dublava a música, fazia uma coreografia maluca e era retirada por “dois sordado” como dizia a letra da música. Ótimo. Quem era  a velha? O Mário.
No Natal, num dos shows com os bonequinhos, o Mário sobe no palco do caminhão da prefeitura vestido de Papai Noel, com direito a saco de brinquedos e tudo.  Eu era o locutor do som. O Mário era o Papai Noel a distribuir balas e doces. Alceu e o resto da trupe abraçavam e sorriam para as criancinhas, todas pequeninas.
Mário pegava uma criança e beijava outra e cantava e dançava. Após uns vinte minutos de performance, a roupa do Mário-Noel havia quase desaparecido. Os botões do casaco tinham ido embora. As partes brancas da fantasia, de algodão, desapareceram como curativos de bêbado. A própria barba, antes imensa, era agora um conjunto de fiapos de algodão. O gorro sumira e os cabelos, antes brancos, tinham ficado pretos de novo.
Resumindo, o  Papai Noel se transformara em mendigo-noel. Ao invés de ir embora, Mário continuou até o fim. Certa vez tive de interpretar esse Papai Noel, já com a fantasia consertada, pois Mário não pudera ir e só fui avisado na hora, acho que de propósito, para não ter tempo de desistir.
Depois vim a saber que o Mário era antigo amigo da família de minha esposa. Fomos visitá-lo e ele nos visitou. Tive em casa várias de suas pinturas feitas em tacos de assoalho. Ele nos presenteou  com um artefato de metal para guardar fósforos, uma obra-de-arte. Deu um carrinho de metal a meu filho. Eram obras feitas por ele e que enfeitavam sua casa, no meio de tantas outras coisas criativas.
Década de 90, já morando em Juiz de Fora, encontrei Alceu em um supermercado. Estava casado, com filhos. Disse-me estar trabalhando também com telão, além de som. Foi a última vez que falei com ele.  Soube que falecera algum tempo depois. Nunca soube sua idade, mas acho que ele se foi cedo demais. Até hoje carrego saudade de sua risada tapando a boca e de sua cabeleira de corda de bacalhau.
Soube que o Mário se foi há pouco. Esteve doente e poucos souberam. Tinha uns oitenta anos, eu acho.
Não pude ver nenhum dos dois pela última vez, mas carrego a imagem da risada do Alceu e as tiradas engraçadas do Mário.
Carrego comigo a gratidão ao Alceu por um dia ter me indicado para diretor de jornalismo da FM Sucesso. Carrego as lembranças da véia da marvada pinga. Carregamos a caixinha de fósforo e o carrinho.
Nessas lembranças é que vejo que o que fica, de tudo que se vive, são as coisas mais simples.
Estejam onde estiverem, meus amigos, espero que se divirtam com essas histórias, porque eu  me divirto quando me lembro de vocês. Só isso pode espantar a dorzinha que se insinua quando a saudade bate.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Quebec - há lugares que não se consegue descrever

Pequena amostra da arquitetura de Quebec. A capital da província canadense de mesmo nome é um primor em vários sentidos. Não dá para comparar com coisa alguma, principalmente a educação do povo na preservação e no uso adequado do que é belo.

sábado, 23 de julho de 2011

CASAMENTO EM PERIGO

Um dia me meti a fazer teatro. Não digo que foi ruim, porque  de tudo se pode tirar proveito, até de clichês feito esse.  
Culpado: meu primo Jair, inteligente o suficiente para ser neurocirurgião e fazer teatro por amor à arte. Já eu nunca abri a cabeça de ninguém, apesar da vontade de, algumas vezes, fazer isso menos tecnicamente.
No final dos anos setenta, assisti à trupe dele atuando e gostei. Era uma peça engraçada e tinha umas meninas bem apanhadinhas no elenco. Quando me convidou para ensaiar um texto seu, fui, para aprender  algumas técnicas que uso até hoje para azar dos que me aturam.
A peça era sobre um casal em crise. Fiz um personagem cafajeste, doido pra pegar a mulher do protagonista.
Tinha 16 anos. Pintei um bigodinho ridículo com sei lá que tinta,  emplastei o cabelo com sei lá que tipo de meleca e me enfiei num terno sei lá de quem. Assim compus o personagem. Conseguimos estrear depois de muita divulgação colando cartazes nos muros da cidade, usando um grude horroroso de polvilho.
Na época, trabalhava numa gráfica e consegui um patrocínio para imprimir os cartazes. Saímos pela vida colando papel e arrancando alguns outros de um circo que estrearia na mesma data.  Ah, tenha paciência... a cidade não tinha um teatro há sei lá quantos anos e logo em nossa estreia teríamos de competir com um circo?
Arrancamos todos os cartazes que encontramos  até dar de cara com os delicados rapazes que os colavam. O mais franzino era aquele que dava uma gravata no leão. Os demais eram apenas trapezistas e tratadores de elefantes.  Acho que nunca corri tanto na vida. Cheguei a ver minha sombra me ultrapassando. Meu primo? Desapareceu como um ninja. Poderia arrumar emprego de mágico no concorrente, tal sua destreza em escafeder-se com  baldes de grude e  pilhas de cartazes.
Revestimos o que pudemos com nossos folhetos.  Todo muro da cidade tinha material nosso. Claro que, de alguns, tivemos de retirar sob pena de ir parar na cadeia, sabem como são as propriedades particulares, costumam ter donos mal humorados.
A época era de ditadura, tudo censurado.  Nossa peça era uma comédia em dois atos, sem pretensão política, puro entretenimento. Pelo menos é isso o que eu acho eu até hoje. Com muita negociação, conseguimos alugar o anfiteatro de um colégio de freiras. Claro, elas quiseram saber do que se tratava. Leram o texto, gostaram e liberaram.
Nosso grupo tinha até administradora de sala, que, quando o espetáculo começou, trancou a porta e mais ninguém entrou. Não sei de onde ela tirou essa inteligente ideia. Boa parte dos potenciais pagantes ficou fora, incluindo dois repórteres que não iriam pagar.
Assim, sem mais burocracia, chegou o dia. Trinta e cinco pagantes num teatro que tinha duzentas cadeiras de palhinha. Olhando por um buraco na cortina, vislumbrei o que parecia uma barraquinha de  tiro ao alvo: um ali, dez buracos mais pra lá, dois pra cá, vinte vácuos alhures.
Somando os repórteres  com os que ficaram trancados lá fora, creio que fornecemos mais uns oito espectadores para o circo, para gáudio dos trapezistas e tratadores que não conseguiram bater na gente.
Todos estávamos nervosos. Olhando de novo pelo buraco da cortina, vi um sujeito gordo e muito sério  sentado na primeira fila. Sozinho. Começamos a nos perguntar o que significava aquele sujeito ali. Com toda certeza um censor do governo. Ou um fiscal, um guarda, uma autoridade.  Ninguém pensava nada que prestasse sobre o homem. O jeito era começar logo, a hora estava chegando.
O grupo tinha um sonoplasta, o Domingos, colega de classe e maluco por tecnologia. Por isso seu equipamento era um gravador portátil a pilha, um bumbo de fanfarra, um despertador extremamente barulhento emprestado de minha avó e algumas fitas cassete com a trilha sonora composta por um sambinha que tocava na hora de uma briga e mais algumas maluquices gravadas que nunca entravam na hora certa. Apesar da competência dele, claro que aquela parafernália não tinha potencial para funcionar direito.
Primeira cena:  meu primo dormindo num sofá.  Som de despertador.
(O relógio usado em cena não tocava, era falso. Quem disparava o despertador era o Domingos, na coxia).
Segue-se a cena:  Jair ouve o despertador,  acorda, espreguiça-se, pega seu relógio falso e finge desligá-lo.
(Nesse momento, o sonoplasta  desliga o despertador real).
Segue-se a cena: o despertador do Domingos toca lindamente. O pobre sonoplasta não consegue desligá-lo. Algo acontece fora do script. Lá, no palco, o pobre ator bate no relógio falso e nada da sirene parar. Público cai na gargalhada. Não prevista.
Segue-se a cena: o  ator, no auge da adrenalina, manda o relógio falso em direção a Domingos, que se não se desvia poderia ter morrido ali mesmo. Sonoplasta quebra o relógio verdadeiro para que o miserável pare de tocar. Público quase morre de tanto rir.
Quando entrei  em cena, meu batimento cardíaco era percebido pela famosa velhinha surda da última fila, para quem, segundo as regras do teatro amador de minha época, todo ator deveria falar, soltando o gogó (coitados dos bons de ouvido da primeira fila).
Para liberar a adrenalina, antes de falar meu texto, tirei o lenço do bolso e simulei uma escarrada magistral que fez o público rir de novo. Ou de nojo. Depois percebi que não foram meus dotes de ator que fizeram os espectadores gargalharem. Eles riram porque quando limpei o nariz, limpei também o bigodinho.
Lá pelas tantas, com a simpatia do público conquistada (ou a pena), entrava em cena uma empregada doméstica.
Era a personagem da fofoca, com texto grande.  No meio de uma discussão comigo, a criatura parou os olhos e ficou toda branca, mais do que a maquiagem de gueixa que usava. Eu ali, esperando minha deixa e nada.  De repente, como uma rolha de champanhe, ela se vira pra mim e diz: “ah, vai, faz você”.
- Ahn? Como assim, “faz você?”
- É, faz qualquer coisa aí.
- Er... ahn... bem... e inventei qualquer coisa até ser salvo sei lá por quem.
Risos e intervalo.
O segundo ato exigiria um pouco mais da mocinha da história, a que fazia o papel de esposa do personagem principal. Sei lá se por causa de tantas confusões no primeiro ato, deu nela uma crise de choro. Pranto convulso. Fui oferecer meu lenço bigodado e só piorei as coisas. Levei a pobrezinha lá para os corredores do colégio para que o respeitável público não ouvisse lamentos tão doloridos. Meu primo tentou algumas táticas de relaxamento que acabaram fazendo o choro virar gargalhada, só que mais nervosa ainda. Ela não parava agora era de rir.
O segundo ato correu sem maiores confusões e com poucos brancos. Isso até o momento da briga.  Quase no final da peça, aconteceria a famosa briga com o sambinha no fundo. Eu e o personagem principal tentaríamos nos agredir e a empregada apartaria a coisa, apoiada por um carteiro que subiria no sofá e pularia sobre todos.  Para nós essa seria a parte mais fácil, nem texto tinha. E foi bem ensaiada, diga-se.
Claro que o sofá quebrou com o carteiro em cima e ele (o carteiro, não o sofá) desabou de mau jeito por cima da coitada, que caiu de joelhos e não mais se levantou, enquanto o carteiro bateu com a cabeça no chão. Eu e meu primo saímos no soco de verdade, pois os miseráveis deveriam nos separar, mas nenhum deles conseguia se levantar. E assim fomos, eu e meu primo, trocando sopapos até as coxias, implorando pro Domingos fechar a cortina e dar aquele show de horrores por terminado.
Aplaudidos de pé. Por mais de dez minutos. Sucesso absoluto. Os dois dias seguintes tiveram casa quase cheia. O problema era repetir o que fizemos no primeiro dia. Não conseguimos, mas fizemos melhor, ou melhor dizendo, pior. E, nesse caso, quanto pior, melhor.
Ah, e o cara gordo, censor do governo, policial, guarda, autoridade? Era um ator, de nossa terra, radicado no Rio. Durante a peça, sua barriga subia e descia, galopando em gargalhadas. Anos depois, pude vê-lo atuando em uma novela das seis da Globo, filmada em São João Del Rei, na qual fazia um soldado muito divertido.
O pior foi convencer a madre superiora a liberar o teatro para os dois dias seguintes. Agravamos a coisa porque, devido aos brancos e confusões, improvisamos alguns palavrões delicados e familiares no meio das frases, até para fazer o público rir mais um pouco. Naquela época, qualquer FDP ou PQP tinha uma sonoridade explosiva, ainda mais dentro de um teatro de colégio de freiras, que Deus não nos envie para o purgatório. Prometemos não repetir os palavrões nos dias seguintes.
Realmente, não os repetimos. Falamos outros.
No meio de tantas verdades, os respingos de exagero são apenas um tempero, porque ainda há muito mais para colocar aqui, envolvendo essa e outras trupes com as quais me envolvi e que envolveram esse coração cinquentão com muita, mas muita saudade.
Ano: 1978
Local: Barbacema
Teatro:  Colégio Imaculada.
Atores: Jair, Lucrécia, Beth, Zé Otávio, Lurdinha.
Sonoplasta: Domingos.
Peça: Casamento em Perigo, de Jair Raso, em dois atos (depois ele inseriu um ato no meio dos dois, mas aí é outra história).




domingo, 19 de junho de 2011

Esse carnaval valeu!

Bem, esse carnaval foi em Tiradentes. Esse valeu a pena. Sem chuva, sem porco, sem barro. Na foto, Zé Rural, de peruca verde e Gleides. Eu, de alto falante.

O CARNAVAL, O BARRO E O PORCO

É evidente que há histórias que morrerão conosco. Outras, a bem da alegria, devem ser compartilhadas, especialmente quando o protagonista é mais inusitado que a situação.
Quando menino, não me dava bem com carnaval. Na adolescência arrisquei-me na bateria do Bloco do Saco, de Barbacena.  Ali as pessoas se vestiam de sacos de armazém, aqueles que acondicionam arroz, açúcar, milho.  Eram doados ao bloco pelos comerciantes, desde que o folião pintasse no saco (do armazém) o nome do patrocinador.
O que eu gostava, mesmo, era de narrar e comentar, para a rádio, os desfiles das agremiações. Fui até jurado uma vez. Verdade que quase apanhei quando critiquei o acabamento das fantasias e quando me recusei a dar uma nota alta para uma escola que decantara as qualidades do governo militar, poucos anos após o término do tenebroso período.
Foi muito bom criar e manter um programa para a FM Sucesso que se chamava O QUE EU VOU DIZER EM CASA. Nele, narrávamos com encenação radiofônica as ocorrências que envolviam prisões, brigas e outras maluquices que só podem acontecer no carnaval. Verdade também que quase entramos em frias imensas, pois os participantes das histórias nem sempre gostavam de ouvir seus nomes aos quatro ventos. Outros até pagavam pra aparecer.
Carnaval é maluquice. Uma vez tive de cheirar um frango dentro de uma sacola encontrada por um amigo, que tinha bebido mais do que podia, para convencê-lo a não comer aquilo, estava podre.
De outra feita, misturei restos de bebida numa garrafa pet. Preparei para os parceiros do Bloco do Pijama, que viviam bicando na garrafa da gente. Ou seja, bebida boa pra mim e a garrafa pet para os outros. Lá pelas tantas, a garrafa de cachaça sumiu e a pet estava comigo.  No dia seguinte, as pessoas me contaram coisas que eu não me lembrava. A tirimbamba devia ter um efeito hipnótico melhor que o do dormonid. Pena que perdi a fórmula.
Mais uma do Bloco do Pijama. Cheguei cambaleando no centro. Bloco disperso, o caminhão de som da rádio desfilava. Os locutores me viram e me colocaram sobre o capô, anunciando minha deprimente presença. Só me lembro de ter escorregado e batido no chão como um saco de batata. Fui devolvido ao lugar por um monte de seguranças e segui sentado naquele capô fervendo. Escorreguei de novo e só me lembro de ter acordado em casa.
A maior esquisitice que vivi num carnaval ocorreu anos depois de já ter desistido de fazer programas de rádio, tocar na bateria, tomar pinga, julgar e narrar desfiles. Um momento de insanidade me invadiu com o convite para ir a Alto Rio Doce ver o carnaval, junto com Zé Rural e esposa, mais minha irmã e o marido.
- Você precisa ver o que é carnaval! Animação, gente jovem, bonita...
- Jura?!
- Claro, você não faz mais nada no carnaval, só fica em casa, vendo televisão.
- Melhor que me arrebentar.
- Você vai conosco. Lá tem uma fazenda, você vai descansar e ver um carnaval jovem, tranquilo, engraçado.
- Não sei.
- Você VAI. (Levaram-me pro jipe e nem conversa quiseram mais).
Sessenta quilômetros de estrada de terra e chegamos. Para não perder o costume, choveu. Sempre chove nas minhas histórias. E sempre chove muito no carnaval daquela região. Só que era uma chuva de verão, daquelas que caem de uma vez por vinte minutos.  
Andando pelo centro, vimos jovens se divertindo sadiamente, pulando em cima dos carros dos outros. Em frente à rodoviária um lago barrento servia de salão para os foliões que deviam ser uns dez mil espirrando água suja.
Resolvemos todos entrar na bagunça. Coloquei uma peruca de Elvis Presley (nunca mais ouvi falar nela depois), optei por me molhar de verdade ao invés de fugir das goteiras da rodoviária.
Depois de meia hora bufando por absoluta falta de preparo físico, implorei para me tirarem dali. Foi legal, adorei empurrar os outros pra sujeira, mas gostei menos quando me jogaram.
Entramos no jipe e fomos para a tal fazenda há uns três quilômetros. A chuva havia parado de vez, mas o que deixou de lama dava pra montar outro exército de guerreiros terracota de Xian. O jipe era daqueles tracionados, que sobem até parede, mas não subiu a anacôndica estrada para a fazenda, localizada nos píncaros da mais alta montanha daquelas plagas.
Em dias normais, aquilo é pó a granel. Em dias chuvosos, a lama chega a ter meio metro de profundidade, sem exagero. O dono da fazenda, que não era de muita conversa, avisou:
- O jipe num sobe não.
- Então vou voltar à cidade e pegar uns cavalos lá, falou o Zé Rural.
- Hoje nem cavalo sobe, “morreu” dois tentando, na chuva da semana passada.
- Então, como vamos? (eu perguntei)
- “De a pé”, uai. 
O último poste com lâmpada funcionando havia ficado há uns três quilômetros. Desci para inspecionar a situação. Quando saí do jipe, pensei que não havia chão. Afundei com tanta naturalidade que achei estava voando.  Como estava totalmente escuro, eles só foram me ajudar quando ouviram meu grito abafado e, mesmo assim, tive de continuar berrando para que achassem o local exato.
Depois de um deles afundar e ter sido resgatado pelo outro, que afundou logo em seguida até ser salvo pelo primeiro, fui puxado pelos dois e saí do buraco sem as botas, que ficaram sepultadas junto com os cavalos da semana anterior.
Não tive muita escolha de por onde ser puxado, motivo pelo qual fiquei sem os fundilhos da calça.
Voltamos abraçados para o jipe. Não pensem em boiolice, aquilo foi uma estratégia para não nos perdermos e para nos segurarmos em caso de escorregões.
Depois de uns três tombos, já dentro do jipe, traçamos a estratégia da caminhada para casa. Tinha de ser a pé, pois o jipe, para piorar as coisas, estava atolado. E parecia que ainda ia afundar mais.  Saímos. Três na frente, minha irmã, o marido e a esposa do Zé Rural.  Três atrás, eu, o Zé e o dono da fazenda.
Assim seguimos, enlaçados uns aos outros. Foi um tal de “ops, epa, cuidado, ui”, “plaft”. Entendi porque minha esposa não quis ir a esse passeio. Ela é bem mais esperta do que eu pensava.
E o rumo? Como saber para onde ir? Estaríamos indo ou voltando? Graças a um senso de direção incomum, o dono da fazenda parecia saber o que estava fazendo. Seguimos pelo absoluto breu, ora enfiando o pé num buraco, ora escorregando espetacularmente.
Após mais de uma hora subindo no escuro, aparece, como que por encanto, um riacho. Bem, era mais que isso, era quase um rio. Como pudemos enxergá-lo? A lua, por incrível que pareça, deu as caras por entre as nuvens.
O rio apareceu e com ele a pinguela, ou seja, aquela ponte na qual só se pode passar um e que, pra piorar, balança feito bambu. Até porque era feita de bambu. Ainda sob algum efeito da pinga que tomei, do afundamento, dos escorregões e de mais de uma hora em absoluta escuridão, não me senti na mínima condição de atravessar aquilo.
- Não vai me aguentar.
- Claro que vai, olha lá. O elefante passou e ela aguentou (Elefante era o Zé Rural que naquela época tinha uns 120 quilos).
- Eu sou mais pesado e ainda por cima estou meio tonto.
- Deixa disso, olha lá, sua irmã está indo.
- É porque ela enxerga mal e não está vendo o que faz.
- Olha, ela passou.
- Eu não passo, problema dela, prefiro ir pelo rio.
- É fundo aqui.
- Vou lá pra baixo onde deve ser mais raso.
- É, mas seguindo pra baixo tem uma plantação de arroz e uma cerca de arame farpado.
- Caramba, então eu atravesso, pronto, me seguro naquele corrimão ali (só naquele momento consegui ver que havia um corrimão na pinguela).
- Não, não pode segurar naquilo.
- Por quê? Regra da casa?
- Não, é que aquilo ali só enfeita, não aguenta peso nenhum.
- Então pra que existe um corrimão que não se pode correr a mão?
- Sei lá, não fui eu que o coloquei lá. (É, fazia sentido, mas poderia ter arrumado, pensei.)
- Vou pelo rio. Pronto.
- Olha, todos já foram. Você vai atravessar ou não?
- Vou nada. Ou é o rio ou durmo aqui mesmo.
- Olha ali. Tem só uns seis metros de altura. Se você cair, o tombo não é muito alto, tem água embaixo, amortece... tem pedras também, mas é mais fácil cair na água que na pedra.
Aquilo não me animou. Se fosse pra cair, o que tenho certeza que seria inevitável, melhor me jogar na água de uma vez.
- Vou pela água.
- Aqui é fundo, melhor então descer mais pra lá (apontou pra direita).
Segui por lá e ele, gente boa, veio atrás.
- Vou com você, vai que tem uma cobra aí.
- Tem nada, tá tudo molhado, cobra não gosta de água (não sei de onde tirei isso).
E lá fomos nós seguindo o leito do rio pela margem até dar de cara com uma cerca.
- Cerca? Atravessando um rio? Como pode?
- Não tá atravessando o rio. Ela acaba aqui e recomeça do outro lado. É divisa.
- Do quê? De Minas com São Paulo?
- Não, de fazendas. A gente passa pela cerca e sai do outro lado, desce mais um pouco, o rio fica mais raso, a gente atravessa na água pelas pedras e sai do outro lado, passa debaixo da cerca de novo e sai do meu lado. Daí a gente só tem de subir o morro e chegar lá em casa.
- Já estou cansado só de ouvir. Melhor ir fazendo isso aos poucos.
Claro que não foi simples para mim. A cerca era de fios muito próximos, então tive de deixar uns pedaços de roupa e de pele ali.  As meias também já tinham ido embora. E que frio. Entramos no rio. Água até a cintura e um frio sorvêtico, picolézico.
- Vai perto das pedras pra correnteza não te levar.
- Correnteza? Tem isso aqui?
- Uai, claro, já viu rio sem correnteza e sem cobra d’água?
- Cobra d’água?
- É, essa aí perto, mas fica tranquilo, ela não morde.
- Como você sabe? É sua conhecida?
Por que a lua resolveu aparecer? Pelo menos no escuro eu não estava vendo nada. Segui próximo às pedras com água até a cara, lembro-me de ter sido arrastado até mais perto de uma delas, na qual bati com o nariz, mas não fui arrastado. Saí do outro lado e lá estava o anfitrião me esperando. Rápido, ele.
- Me dá a mão que eu te puxo.
- Mais fácil você cair aqui tentando me puxar.
- Me dá a mão logo, anda. A cobra tá aí atrás de você.
Nem precisei da mão dele. Num átimo, lá estava eu de pé no barranco, prontinho para passar por baixo da cerca, ganhar o terreno dele e subir o morro em busca de um chuveiro quente que pudesse me ajudar a evitar a pneumonia até ali iminente.
Claro que deixei o resto da camisa na cerca, mais baixa que a anterior. Claro que me arrastei pela grama por alguns metros, até ter certeza que não havia mais arame farpado em cima de mim. A lua se foi outra vez e tudo foi escurecendo, mas subi valentemente o morro. De repente, vi uma lâmpada lá longe. Meus amigos, do tamanho de formigas, acenavam.
- Chegaram! Estão vivos!
Como um sobrevivente do ataque de Pearl Harbor, adentrei os portais do casarão, divisei um fogão à lenha com uma panela de sopa borbulhando. Aquele cheiro me deu forças para abraçar uma toalha, um sabonete, uma roupa limpa e um banheiro, onde tomei o banho mais reconfortante da minha vida, perdendo apenas para aquele que tomei depois de uma semana no pátio do exército tomando sol de graça.
Após o banho, recomposto da fisionomia de horror, tomei a sopa e me dirigi ao aposento. Morri ali mesmo e ressuscitei no dia seguinte, às cinco da manhã, ouvindo guinchos. Guinchos profundos e tristes, de um porco.  O que fazia um porco acordado e guinchando àquela hora? De ressaca e ainda com os músculos tremendo pelo esforço da véspera, abri a janela e vi.
Subindo o morro e já quase debaixo de minha janela, dois peões puxavam um porco enorme, que guinchava de dar dó. Achei que era pesadelo.
- Vamo levá ele pra lá.
- É, debaixo daquela jinela tá bão.
- Sossega, porco (e cacetada no pobre).
Eu não podia acreditar, mas eles iam matar um porco ali, cinco da manhã, naquele chão barrento, debaixo da janela do quarto onde eu tentava dormir.
- Ei, o que vocês vão fazer?
- Uai, homi. Num tá veno? Vamu matá esse porco.
- Mas é feriado...
- Pru sinhô, da cidade grandi... pra nóis num tem isso não... se quisé pode ficáveno...
Não tive outro jeito. Fiquei ali vendo o porcocídio. Um dos peões foi ao celeiro e pegou uma pá, com bosta de cavalo colada. O outro pegou um balde, despejou os ratinhos que moravam nele no chão e se dirigiu para a janela. O da pá tirou uma faca não sei de onde.
- Levanta o subaco dele aí.
- Tóim (barulho de facada no sovaco do porcão).
- Gui-gui-gui...(e a guinchação aumentou, sangue pra todo lado).
- Me dá esse sabugo aí.
- Toma.
O da pá pegou o sabugo de milho e arrolhou o buraco feito no sovaco do porco, que ainda guinchava. O porco, não o sovaco. Cheguei a pensar que ele tinha errado o coração da criatura, pois o que eu ouvia de guinchos era um espanto. Foi quando apareceu o Zé Rural no pátio pra ver o que se passava.
- Ah, matando porco...  mas desse jeito?
- Desse jeito como?
- O pobre tá cansado, subiu esse morro todo até aqui e vocês já enfiam a faca assim mesmo? Vai levar um ano pra morrer.
- Zé, nóis num tem um ano não, ele vai morrê é logo (deu umas cacetadas na cabeça da criatura - que maldade - até que o bicho sossegou).
Não vou negar. Ensaiei umas lágrimas. Fiquei pensando no dia que o pobrezinho nasceu (nem meu conhecido ele era), um leitãozinho cor-de-rosa pequenino, de nariz de tomada, todo mundo achando uma gracinha, a dona porca toda orgulhosa de seus vinte porquinhos... e agora ali, morto cruelmente. Não gostei nada daquilo.
- Vocês são uns covardes, gritei.
Ouvi um dos peões perguntar ao Zé Rural quem eu era e se era bom da cabeça. Pela resposta, cochichada no ouvido dele e pela risada que veio depois, boa coisa o Zé não disse a meu respeito.
Daí a pouco, colocaram o porcão em cima de uma tábua imunda e meteram fogo nele. Pensei: tanto trabalho e agora incendeiam a criatura? Não era um incêndio, era uma sapecada nos pelos. Logo um deles apareceu com um prestobarba. Foi tudo ficando branco.
Em seguida, eu já estava fora, vestido e totalmente esquecido da necessidade de dormir. Fui ver o resto da carnificina. Minha irmã e meu cunhado lá estavam, também dando vazão a seus instintos sádicos.  Além de nós, apareceram mais de cinquenta galinhas, todas esperando um pedaço de qualquer coisa.
Colocaram o porco de barriga pra cima, meteram uma picareta na barriga dele, rasgaram tudo. Colocaram o balde embaixo e, com a pá, encheram-no de tripas. Porco vazio, balde cheio.  Zé Rural começa a criticar a higiene.
- Olha a porqueira.
- Claro que é porqueira... não viu que eles mataram um porco?
- Não é isso, estou falando é dessa falta de higiene. Olha, uma pá colada de bosta de cavalo, um balde imundo, esse porco aí no chão enlameado, misericórdia. Se a vigilância sanitária baixar aqui acho que até nós teremos de pagar multa pra continuar vivendo.
- Que exagero. Isso é para consumo familiar mesmo.
- Uai, e família não tem de ter higiene?
- Eles vão fritar isso tudo e a sujeira desaparece.
- Anti-higiênico e pronto. Olha as galinhas. Todas bicando a barriga do porco. Olha aquela lá fugindo com um pedaço da vesícula dele.
- Ela vai se ferrar, aquilo é amargo, é bile...
- E galinha lá tem paladar?
Como se o show de horrores ainda não tivesse sido suficiente, entrou em cena um jumento. Os dois colocaram as bandas do porco, devidamente vazias, sapecadas e bicadas de galinha, em cima do pelo do lombo suado do pobre equino. E lá se foram, puxando o jumento carregado de porco.
- Inté, seu Zé Rural, inté seu homi duente. Fica cum Deus, que ele protege oceis.
Fiquei pensando que Deus era esse que iria me proteger, enviado por esses desalmados, que acordam um trabalhador de férias, em plena madrugada, assassinam fria e cruelmente um pobre ser de nariz de tomada, deixam uma sujeirada danada para chamar mosquitos que logo chegaram. E que ainda me chamam de doente. Coisa do Zé Rural.
No café da manhã, fiquei longe de presunto. Só pedi para voltar pra casa quando meu cunhado, após encher a barriga de queijo, fez uma sugestão iluminada ao dono da fazenda.
- Essa bela casa poderia ser transformada em um grande hotel, o que acha? Um hotel fazenda!
Nesse momento, minha irmã engasgou com um biscoito de polvilho, cuspindo tudo em cima de mim. O dono da casa olhou pra ele e, de forma simples, respondeu:
- Até dava, mas essa estrada é muito ruim...
Eu devia ter avisado para não darem queijo ao meu cunhado. Não me aguentei:
- Claro que poderia ser um hotel. Hotel de aventuras. Ele vai fazer um estacionamento para seiscentos helicópteros aqui. Afinal,  quem não tem um helicóptero hoje em dia? E ainda oferecer um tour à La Indiana Jones.
Carnaval é mesmo um período de maluquices. No ano seguinte, meus amigos voltaram à carga para me levar novamente para Alto Rio Doce.
- Ah, você precisa assistir o Bloco da Burrinha... é muito legal... ano passado nem pudemos ver!
No que eu respondi:
- Depois de tudo que eu passei, ainda vou de novo ver um bloco, ainda por cima chamado Bloco da Burrinha? Nem se eu fosse o burro do bloco eu iria. Prefiro ficar aqui, emburrado.
Agora, cá para nós.
Graças a Deus temos amigos que riem com a gente.
Que, mesmo diante das chatices nossas de cada dia, continuam nos convidando, pelo puro prazer de estar ao lado da gente.
Amigo não tem defeito. E ponto final.