sexta-feira, 20 de maio de 2011

Esse foi um dia muito especial. Comigo, no palco, a querida Carla Weiss, então Gerente de Marketing da Diabetes Care da Bayer. Ganhamos do GRUPEMEF uma LUPA DE OURO pela campanha de lançamento do Breeze2. Ganhamos também uma de prata, pelo lançamento do CONTOUR TS. Gosto de lembrar que as campanhas foram lindas, apresentadas por mim ao comitê julgador do GRUPEMEF. Pela primeira vez, mesmo não sendo mais do marketing, subi ao palco do evento mais importante da indústria farmacêutica do Brasil. Emoção pura e realização para um velho vendedor contador de histórias.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

EU E O FUINHA

Tive um carro velho, não mais velho que muitas furrecas que ainda rodam.
A diferença é que eu sei o que passei com meu primeiro carro, um chevette 74, adquirido em 1986. Doze anos separavam meu primeiro carrinho de sua linha de montagem. Nem tão velho era. Eu o fiz ficar.
Comprei-o sem negociar. Tentei pechinchar, mas era minha primeira grande aquisição. A emoção de ter meu veículo, depois de anos mendigando voltinhas no carro do pai e dos amigos, não me permitiu negociar. Lembro-me do preço: vinte e dois mil qualquer coisa (não vou saber o nome da moeda, se cruzeiro, cruzado, cruzado de direita, lascas).
O banco me emprestou dez. Meu pai mais dez. E o cara não quis abrir mão dos dois. Naquela época, a oferta de carros não era como hoje. Andei procurando e só achei umas belinas podres e umas variantes em processo de definição da idade pelo carbono 14. Fuscas nem pensar, muita manteiga pra pouco pão.
Acabei ficando com o chevelho 74, mostarda, pneuzinhos mais pra meia-boca que pra meia-vida. Minha avó, que passou boa parte da vida sonhando em me dar um carro, raspou a conta e me deu os dois que faltavam.
Não me importei com o impregnado cheirão de bograxoleolina*, nem com os paralelepípedos e pés-de-moleque que passavam céleres quando eu olhava pra baixo, entre os pedais.
Estacionei na entrada da rádio onde trabalhava e saí girando o chaveiro após bater a porta e ouvir um barulho diferente de todos os barulhos portais que já tinha ouvido. Algo como um  “póó” agudo, seguido de um eco. Não havia de ser nada.
O locutor do horário era o Walmir Leporatti, compositor e cantor dos bons, um cara que mantém um pé na terra e outro na poesia. Foi ele que, ao ver pelo vidro do estúdio o meu mostarda, disse:  -  Legal o seu fuinha.
- O meu o quê?
- Seu fuinha. O nome que dei pra ele lá.
- “Ele lá” é o meu carro!
- Ah, lógico, claro...
- Não gostou dele?
- Claro que gostei. É uma singularidade! (Até hoje não sei se isso foi um elogio).
Logo o levei para minha namorada (hoje minha esposa) conhecer. Ela morava meio longe e eu ia quase todo dia lá a pé. Com o fuinha pudemos passear mais longe, algumas vezes nos perguntando porque levar o chevette.
Eram estradas de terra, calçamentos irregulares, buracos, barbeiragens e falta de manutenção. Acreditem, convivemos mais de dois anos, mesmo não sendo eu um sujeito muito dado a capricho.  Só lavava o fuinha de vez em quando. Até porque na terceira lavada ele ameaçou mudar de cor. Passei a lavá-lo com menos frequência e ímpeto.
Certa vez entrei num supermercado onde o estacionamento escuro parecia um labirinto. Bati com a frente do fuinha no fim da vaga achando que era mais comprida. Afundei o que restava do para-choque e a cara dele ficou ainda mais afuinhada.
Aconteciam coisas nele que nunca vi em carro algum. Ao desligar e tirar a chave do contato, ele permanecia funcionando e só parava quando eu desligava o farol. Outra: ao acionar o pisca-pisca, o esguicho de água funcionava. Dependendo do dia e da vontade dele, buzinar podia ser fatal, pois ele morria. Isso sem falar na paisagem do assoalho que aumentava cada vez mais. Quando chovia entrava tanta água que só arregaçando as calças.
Belo dia, no meu programa na rádio, anunciei na bolsa de empregos uma vaga num laboratório farmacêutico. Pagavam bem, exigiam segundo grau completo, boa comunicação e carro.
Pensei comigo: tenho terceiro grau, comunico-me por profissão e tenho o fuinha. Fui fazer o teste. Sessenta candidatos a uma vaga. Psicotécnico, cálculos, conhecimentos gerais, entrevistas, fiquei na peneira até o final. Foi aí que o supervisor quis ver o meu carro.
Pelo menos estava recém-lavado e com os pneus engraxados pelo Maranhão (o nome de um profissional que lavava o fuinha sem tirar a cor). Estacionado em frente ao hotel, no meio de escorts, monzas, unos, estava o fuinha, muito humilde e muito mostarda.
- Qual é o seu carro? Essa foi a pergunta que eu mais temia em todo o processo de seleção.
- Ali... Apontei com o beiço na direção dos carros.
- O escort? Bonito...
- Não... o outro.
- Poxa, um Monza... carrão!
- Não... é aquele ali... disse com a voz quase sumindo.
- O Uno... carrinho fraco, mas está novo.... muito bom.
- Desculpe, mas você não acertou ainda...
- Como não? Já falei todos os carros que estão ali... menos aquela kombi e aquele caminhão.
- Não está vendo o chevette?
Ele firmou a vista, olhou pro fuinha, olhou pra mim de volta, olhou de novo pro fuinha e assim ficou por um bom par de minutos, até emitir o primeiro som.
- Arnft...aquele cor de... mostarda?
- É... é o único chevette da fila.
Desapontado, o homem atravessou a rua, rodeou o carro, olhou os pneus, espiou dentro e disse:
- Desculpe, não sei porque não reparei nele antes..
- Eu sei porque (pensei).
-  Olha, sem querer magoar, mas... dispensei uns três bons candidatos pra ficar com você...
- Ele aguenta.
- Não aguenta não. Seu setor de viagem será enorme.
- Por favor, ele aguenta. E eu preciso do emprego.
- Tem certeza? Vou ter de pular algumas regras de segurança da empresa e...
- Seis meses e eu troco.
Ele aceitou e eu comecei a trabalhar.
Viajava no fuinha quatro semanas por mês e ele sofreu calado. Nunca me deixou na mão. Destruído, motor retificado, com mais de quinhentos mil quilômetros nas costas, o valente fuinha continuava espirrando água quando eu ligava a seta, morrendo quando eu buzinava, fedendo a graxa, escorregando nas curvas.
Certa vez precisei cortar caminho para Ouro Preto. O chefe ensinou a usar uma estrada de Ouro Branco até lá. Disse que era uma estrada de cascalho, muito boa, sem buracos. Deveria ter dito cem buracos. Por quilômetro. Peguei a estrada de sessenta quilômetros e a buraqueira era tanta que os vidros das portas afundaram. Fiquei à mercê da poeirada pelos quase seis mil buracos nos quais entrei e saí.. até começar a chover. Todo empoeirado, recebia agora uma aguaceira das janelas e do assoalho. Não me sobrou uma parte limpa. Transformei-me, em alguns quilômetros, em um barranco humano. Cheguei a Ouro Preto no horário para me encontrar com o chefe. Pontual e imundo. O carro parecia um torrão. O chefe, na porta do hospital, ao ver aquela cena surreal, correu em minha direção.
- Nem se atreva a entrar no hospital desse jeito. Que aconteceu?
- A estrada que você me indicou. Ótima.
- Você pegou a estrada certa?
- E existe outra entre Ouro Branco e Ouro Preto?
- Troque essa roupa, tome um banho, vá para o hotel, lave esse carro...
- Tá bem, mas acho melhor não seguir essa sequência...
- Vá logo!
Estava de mau-humor. Pra variar.
O fuinha ainda não havia esgotado sua capacidade de me meter em fria. Num feriado prolongado, viajei sem ele e meu pai tentou dirigi-lo. Ele engasgou, cuspiu, morreu, falhou, só faltou falar que não aceitava outro motorista. Quando cheguei, meu pai sugeriu que eu me livrasse daquela “geringonça”. Como? Com que grana? Entrei no carro, virei a chave e... mágica! Funcionou perfeitamente. Nunca entendi isso.
Certa noite, minha avó no hospital, fomos visitá-la. De fuinha. A caminho, lotação esgotadíssima (meu pai, minha mãe, minhas duas irmãs e eu), a parte final do escapamento arrebentou. Estava podre, claro. O barulho passou a ocupar a sala de toda a vizinhança que tentava assistir novela. Seguimos caminho, o hospital tinha horário.
Na volta, o resto do cano acabou de soltar. Sabe aquela parte da frente, conectada no motor? Pois é, aquela coisa caiu no chão, onde ficou. Eu nunca tinha ouvido um barulho tão infernal, grave e estrondoso. E a família dentro, minhas irmãs gritando para eu dar um jeito naquilo. Como? Só desligando o carro no centro da cidade, no meio do trânsito. Foi aí que o fuinha endoidou. Parece mentira, mas a buzina, nesse momento, disparou.
Nada mais impróprio para o centro da cidade numa sexta-feira à noite. Não havia como parar. E, claro, esse é o melhor momento para ver amigos e conhecidos. E lá foi o fuinha berrando com minha austera família dentro, tapando os ouvidos.
Chegando em casa, meu pai abriu o capô, enfiou a mão nos fios da buzina e puxou tudo de uma vez.
- Praga de carro!
O prazo prometido ao chefe estava vencendo e eu já havia guardado algum para trocar por um carro um pouquinho mais novo. Por sorte o Delfim, colega de outro laboratório, tinha uma Brasília 78, super conservada e ofereceu-me em troca. Ele queria terminar de pagar sua casa.
Na verdade, eu comprei a Brasília dele e dei o fuinha e mais dois pneus novos de volta. Isso depois de jurar que o carrinho ainda aguentaria pelo menos seis meses. Acho que o fuinha me ouviu, pois aguentou.
Uns três anos depois, trabalhando em Lavras, motorizado com um carro da companhia, fui apresentado a um colega de profissão que só conhecia de nome.
- Ele é irmão do Delfim, que te vendeu a Brasília e ficou com teu Chevette.
- Ah, prazer... Delfim é um grande amigo. Seu irmão? Vocês são parecidos...
- Espera  aí... foi VOCÊ que vendeu aquele Chevette pra ele?
- F-foi... (já fiquei com medo de alguma notícia ruim).
- Você acredita que ele me vendeu aquele carro, ou melhor, aquela coisa?
- Seu irmão fez isso com você? Ou melhor... que legal...
- Legal? Aquela coisa desmanchou comigo no meio da rua...
- Como assim, desmanchou?
- Desmanchando. Começou entrando uma aguaceira em baixo, depois os vidros das portas se soltaram, escutei um estalo e o assoalho se desprendeu da lataria, ele arriou comigo e tudo. Desmanchou. Vendi a quilo para um ferro-velho lá de Juiz de Fora.
Depois do fuinha tive muitos outros carros, inclusive chevettes. Tive bons e ruins, novos e velhos, mas, confesso: se os objetos ganhassem alma ou pudessem ser invadidos por elas, creio que o fuinha, se teve uma alma, está no céu agora. Ele parecia gente. Parecia me conhecer. Fazia-me passar vergonha, mas na hora “h” era valente. Foi com ele que tudo começou de verdade. Na profissão, no namoro, na família que criei.
Em tempo: consegui pagar o banco e meu pai. O banco, com todos os juros possíveis. O pai, bem, ele só me pediu para dar a metade, sem juro, sem nada, a uma das irmãs, para não favorecer um filho só. E minha avó, que me deu o dinheiro faltante, bem... essa não sei como agradecer, pois está no céu há muito tempo, mas ainda teve tempo de passear no furrequinha do neto.

* bograxoleolina: cheiro misturado de borracha, graxa, óleo e gasolina.







quinta-feira, 5 de maio de 2011

Eu e a Moto II

Um amontoado de linhas não basta para contar minha odisseia com motos. Se a história anterior não lhe convenceu que nasci para andar motorizado sobre quatro e não duas rodas, acompanhe isto.
Tinha uns 19 anos. Um velho amigo da rádio, pai de família e tudo, me aparece aboletado numa moto. Nem sei se era dele. Pleno carnaval.
- E aí? Gostou da maquinona?
- Legal.
- Vamo nessa?
- Nessa o quê?
- Nessa moto aqui, seu.
- Não, obrigado (Ele me pareceu meio tonto).
- Vamo lá, cara. A gente passa no Meia-Lua*, aquilo lá tá saindo mulé pelo ladrão.
- Han... mas se elas derem mole, onde vamos levar? Aí só cabem dois.
- Se EU me der bem, VOCÊ tá fora.
- Nada como uma boa dose de sinceridade.
- Mesmo assim, tá valendo o convite. Pensa... você, com essa pinta de locutor, numa moto, na frente daquela mulezada...
Sempre disseram que minha imaginação era fértil. Hoje não tenho dúvida: coloquei meus óculos escuros e me vi um genuíno Chuck Norris (esse era o cara, como dizem hoje).
Logo me vi enfrentando as ladeiras de Barbacena. Sei lá que moto era aquela, fiz questão de esquecer. Não gostei dela. Criatura sem originalidade, empinou comigo. Não entendi. Dessa vez o sujeito era tão gordo quanto eu, não podiam me acusar.
Após uma arrancada pouco chucknorriana e uma empinada sem nenhum charme, a moto bateu forte com o pneu da frente num buraco, fazendo meu queixo trombar no capacete do meu amigo, que, com isso, tonteou. Com o queixo doendo e uns dois dentes bambeando, senti aquele gosto típico de “zinabre”. Como conferir se aquele gosto era sangue mesmo?
Ziguezagueamos em velocidade imprópria para dois obesos, por uns duzentos metros pela avenida esburacada onde morava minha tia, que, para piorar o quadro, estava com todas as filhas na varanda vendo o maluco do sobrinho agarrado naquelas coisas que ficam atrás da garupa, balançando a barriga e gritando: ou ou ou ou oooooo... e uma segunda voz sem entonação gritando na frente... eeepaaaaa... seguuuraaaa...
Quem já viu uma moto fazendo isso sabe o fim. Pois não aconteceu.
Sei lá que santo pôs a mão, mas conseguimos ir reto por mais ou menos duzentos metros até fazer uma curva à esquerda depois da praça, rumo ao cenário do carnaval. Mal respirava aliviado por não ter me ralado todo, quando surge outro desafio: uma inexorável ladeira (tudo em Barbacena acaba e termina em ladeira). O domador da fera reduziu para que ela aguentasse subir com a carga dupla de banha.
Acho que ele não sabia guiar não. Na debreada, senti que meu traseiro saiu da moto. Estava no ar. Dava pra sentir um vento diferente no Sul. Vinha descendo um fusca azul, com um adesivo no vidro da frente: ”Só Jesus Salva”. Tentei rezar ao menos a frase, mas, de novo, morro acima, a moto ziguezagueou e empinou. Ou o contrário, sei lá. Para não bater no fusca, que descia peidando como seus similares, meu amigo deixou a moto cair pela primeira vez. E com ela, ele e eu. Ela por cima de mim. Ele por cima dela. Não houve qualquer arranhão. Na moto. Eu ralei o joelho direito. Abriu um buraco pequeno, nada sério. Tirei as pedrinhas de dentro do joelho, meu colega sacudiu a poeira, levantou a moto, contemplou-a maravilhado.
- Nem um arranhão! Perfeito.
- Ugh... agh... q-que b-bom... ui. (As costas doíam, o joelho ardia e eu podia perceber que o gosto de zinabre que senti lá atrás era mesmo proveniente dos meus dois dentes de baixo que bambearam).
- Vamos nessa! Errê... (definitivamente, ele tinha bebido e não devia ter sido pouca coisa).
- Não... já deu por hoje.
- Deixa disso, sô. Nem arranhou, olhaí. (Apontou exatamente para o joelho sadio).
- Não, dá pra ir a pé pra casa, fica tranquilo, segue em paz, vai,  boa sorte com as mulé... ui.
- Tá longe, sô. Sobe aí, o Meia-Lua é logo ali, já-já vamos ver a mulherada.
Tentei resistir, mas o argumento era bom. E vinha a imaginação: era agora um Indiana Jones com ferimentos. Um conjunto sedutor: moto, óculos escuros, dentes esmagados e joelho arranhado. Charme bizarro, por que não?
Subimos outra ladeira mais leve, viramos à direita e lá estava o castelo dos sonhos de todo adolescente da época em Barbacena: aquela rua atolada de gente, um bloco batucando um samba arrítmico, cinquenta desafinados cantando algo como bandeira branca amor não posso mais e um monte de garrafa de cerveja vazia espalhada na calçada. Aquilo era o paraíso.
- Viu, viu? Valeu ou não valeu um tombinho de nada?
- É, mas mulé que é bom não vi ainda. Só tem marmanjo, olha lá.
- Não, tem mulé também... é que a gente tá longe e elas ficam mais dentro do bar.
- Dentro? E por acaso o Meia-Lua tem dentro? Se tivesse mulé já dava pra ver daqui. Roubada, viu...
- Cara chato, você. Vamo lá que eu te mostro se tem ou não tem o que a gente gosta lá.
Arrancou com tudo, o suficiente pra que eu pudesse ver umas meninas até que bem apanhadinhas, pelo menos nos míseros segundos que tive para ver alguma coisa até tudo escurecer.
Nunca me esqueci desses últimos segundos de imaginação. Era agora o Steven Seagal, quase a descer da moto com toda a panca, olhar ao redor, apontar para a loirinha de shortinho e dizer: hello. E as demais suspirando. Pronto. Só vi a loirinha e tudo já saiu do ar.
Claro que todo mundo entendeu. Acordei num hospital e pensei que tinha morrido. Só que, diferente do cinema, não vi nenhum rosto desfocado à medida que acordava. Sabe aqueles rostos enormes, em primeiro plano, entrando em foco aos poucos, aquela voz de caverna...nada. Vi só uma enfermeira saindo e dizendo “pronto, já acordei o dorminhoco”. Acho que ela esfregou alguma coisa no meu nariz e na minha boca, porque meus dentes doíam mais.  Minha imaginação não conseguiu produzir nada cinematográfico. O que escutei foram os berros do meu amigo. E o gosto na boca era de sangue mesmo.
Um enfermeiro com um cotonete gigante de ponta vermelha pintava as canelas do pobre coitado enquanto dois outros tentavam segurá-lo no leito. Aquilo devia doer muito. Como esperneava o homem. E fazia caretas. E gritava. E blasfemava.
Ainda sentia meus olhos doendo de tão arregalados com aquela cena quando um dos enfermeiros virou-se para mim com ar de Coringa do Batman:
 - Arrá... aí está você. Já vamos cuidar de seus ralados. Fica tranquilo.
- Não precisa não... olha, já estou bom!
Tentei sair e mostrar a eles que não precisavam se preocupar comigo, mas cadê. Doeu tudo. Parecia que tudo estalava. Doía costela, cotovelo, joelho.  Foi aí que vi que tudo estava ralado, especialmente o joelho direito, que ganhou mais uns centímetros de profundidade.
- Quieto aí, sô. Num tá vendo que tá todo ferrado? (Virando para os outros) -  Jão, Ademirso, deixa esse aí e me ajuda aqui com esse chupetinha de baleia.
Não gostei da intimidade. Um dia fui contar esse apelido a um amigo de trabalho e tive de suportar gozação por um tempão.
Lá vieram os dois e gentilmente me seguraram enquanto o dono do cotonete gigante embebia o danado num balde escrito “merthiolate”. Não era esse mertiolate incolor e sem dor que existe hoje... era aquele vermelhão mesmo, terror das crianças machucadas e adolescentes ralados.
- Vamo lá, pessoal... é um e dois e... (não me arrisco a fazer aqui a onomatopeia proferida). Acho que foi a dor mais horrorosa que já senti na vida, perdendo só para a primeira cólica renal que tive anos depois. E o enfermeiro se divertia pintando tudo com aquela tinta dos diabos, enquanto outro anestesiava o joelho e já ia dando os pontos necessários e um terceiro pegava outro cotonete de Itu e besuntava meus braços. Na lateral direita, o enfermeiro-mor passava uma atadura para o enfermeiro da lateral esquerda, enquanto o centro-avante enrolava uns cinquenta metros de gaze e esparadrado nos meus joelhos. Encurtando a ópera: me colocaram de pé e eu me vi uma perfeita semi-múmia.
Meu amigo parecia semi-morto no leito e minha vontade era fazê-lo um morto inteiro, mas me contive e saí dali, mancando e agradecendo, pois, apesar de seu notório sadismo, os enfermeiros foram muito profissionais. Fiquei bom. Pelo menos da cabeça, pois nunca mais andei de moto, nem na garupa, nem guiando, nem bêbado, nem são.
O maior vexame foi à noite, ao chegar no stand da Rádio para transmitir ao vivo o desfile das Escolas de Samba. Com crachá da imprensa, era livre para circular por dentro do isolamento. Lá fora, os mortais. Aqui dentro, os imortais da Rádio. Lá estava de volta a minha velha e boa imaginação. Achava-me famoso, importante, envergando o microfone da AM Correio da Serra. Chegava a pensar que o mundo todo estava me ouvindo contar o acidente que me transformara em múmia.
Do lado de fora, algumas mortais meninas riam de mim todo arrebentado. Podia jurar que eram as mesmas que estavam lá no Meia-Lua. E isso não era imaginação.

*Meia-Lua: barzinho da moda na década de 80. Existe até hoje na região de São Sebastião, em Barbacena.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Eu e a Moto

Certas coisas não combinam: leite com queijo, vinho com uva, pão com rosca, eu com moto. Eu até gosto delas, mas elas não gostam de minha pessoa. Tentei, mais de uma vez, fazer amizade, mas o que consegui foram hematomas, arranhões e vexames.

Quando adolescente e duro tive um amigo, mais duro ainda, fascinado por moto. Ficava o dia todo me perturbando, contando como seria sua emoção no dia em que conseguisse uma, sentasse nela e saísse pelas estradas... vruummm... ventinho no rosto, etc.

Tanto me encheu com esse assunto que um dia lasquei:
- Pensa: tu não "sabe" dirigir nem andar de bicicleta e quer ter uma moto? Vai cair! Na hora da curva, aquele escorregão e plác, traplác, cataplác, pum (esse pum aí é a queda fnal).
E não é que ele comprou uma e se deu bem com a criatura? Parecia um elefante sobre rodas, mas isso é outra história que ainda conto.

Há muito, estava eu trabalhando no quinto andar de um clube em Barbacena, onde tinha uma salinha de advocacia, quando me aparece o amigo Kemil para uma visita (nunca mais voltou, porque o café era horrível e já estava fedendo na garrafa).

Antes do "cafezinho", o telefone tocou: eu havia esquecido em casa documentos importantes. Como precisava deles com pressa, Kemil, gentil como sempre foi, cedeu-me sua moto. Desprendido, ofereceu-me as chaves e explicou-me como encontrá-la na portaria do clube: - É uma DT 180 Trail, preta, lindona. Vai lá!

Fui, né? Chegando, divisei a moto. Preta, mas... lindona? Pensei: o Kemil tem problema. Ali estava uma motinha feia que nem a gia, pretinha fosca, pintada, com toda certeza, a pincel. Enfiei a chave no contato, virei, bati o pé no "massachussets" e.. ela pegou! Estava dando meia volta pelo clube quando a coisa morreu. Acho que afogou, catingava gasolina.

Imaginem a cena: um gordo de terno amassado, tentando fazer pegar uma motinha preta-fosca fedendo a gasolina, no centro da cidade, sob um sol lascado. Eis que surge, no meio do povo, saindo da calçada apinhada, um conhecido cujo nome não me lembro mais.

- Jairão, quer ajuda?
- Ah, sim, você entende disso? Essa moça aqui não quer pegar.
- Claro, tenho uma igualzinha.
- Oba.
- Ahn... vejamos... aqui tudo certo (olhando o afogador), aqui também... (olhando sei lá o quê), aqui... e, de repente, parou.
- O que houve? Engasgou?
- Não... não está engasgada não...estou vendo uma coisa.
- Não, VOCÊ engasgou? Ficou tão quieto de repente.
- É que... bem... cara, não sei o que dizer, mas ESSA MOTO É MINHA!!
- Como assim, sua?
- É minha!
- Não pode. É do Kemil, ele me emprestou, veja, tenho a chave, ela ligou e andou até aqui.
- Não! Essa moto é minha, você pode ter chave e o escambau, mas ela é minha! Olha os documentos aqui, olha!
- Hm... m-mas... co-como pode?
- "Deixeu" guiar, vai pra garupa.
- An? Como? (ainda estava sem entender coisa alguma)
- Senta aí atrás. E arrancou com a moto empinada, muito íntimo da pretinha-fosca. (Claro que empinou, ele um fiapo de gente e eu, bem, eu na garupa). Deu a volta no clube, pela rua principal, parou na outra porta.

Lá estava a tal DT-180 Trail, lindona, preta brilhante, com detalhes cromados. Coisa fina.
- Vê se não é essa aí a moto do Kemil. Conheço ele, rapaz de bom gosto, jamais ia ter uma feiura feito essa aqui.
- Er... ar... bem... sua moto não é feia, é só meio assim... singular.
- Feia, baixinha, CG-125, pintada por mim com esse pincel. E tirou sei lá de onde um pincelzinho, como querendo provar sua "expertise".

Foi-se deixou-me ali, ao lado daquela grandona, estilosa, brilhante. Fiquei pensando: e se eu não o encontrasse? E se ele chegasse do outro lado do clube e não encontrasse sua pretinha? Imaginei-me voltando com a moto dele e encontrando uma viatura da polícia e o pobre rapaz em lágrimas. Como explicar aquilo? Como um delegado acreditaria? Já imaginei a manchete (naquela época não acontecia muita coisa, tudo era motivo): Advogado foge com motocicleta roubada.

Chegando ao quinto andar, contei a história ao Kemil, que até hoje não acredita.

Por essas e por outras é que não duvido de ninguém, nem acredito de primeira. Permito-me sempre o direito da dúvida.

Ah, em tempo: antes de subir, tentei ligar a DT-180 Trail preta-brilhante-lindona. Ela não pegou.