segunda-feira, 29 de agosto de 2011

O SOM DO ALCEU, O MÁRIO E AS LEMBRANÇAS

Houve um tempo em que as coisas estavam pretas. Não digo isso revirando apenas a minha história, mas minha história num contexto em que quase ninguém tinha dinheiro para quase nada. Quase ninguém.
Era um período de recessão acompanhada de inflação. Sim, senhores economistas, um paradoxo. Foi nessa época que comecei a trabalhar.
Para fazer um salário mínimo, um trabalhador feito eu, aos dezesseis anos, precisava juntar as migalhas que ganhava ora na rádio, ora no jornal, ora tudo isso junto e ora...  fazendo som.
É sobre isso que vou falar. Não era aquele som que muitos já faziam, tipo mistura de DJ com animador de festinha. O som era da pesada.  Nada de heavy metal, para isso eu não tinha iniciação, o que eu fazia era sonorização de eventos. Tinha palco à noite, música de dia, propaganda o tempo todo e locução a mais não poder.
A empresa era pequena, de um amigo que vendera tudo para montar sua equipe de som. Fora dono de boate e de conjunto, que hoje chamam “banda”. Exímio baterista. Chegou a gravar um LP ou fazer parte de um, não sei bem. O nome do meu amigo: Alceu. E da banda: “Os Intocáveis”.
Na época da banda eu ainda era muito jovem e achava que esse nome era uma homenagem à  capacidade do grupo em não tocar coisa alguma, o que depois comprovei não ser verdade, pois tocavam bem. O nome significava outra coisa.
Alceu, depois de empreender pela noite e pela música, resolveu usar seu talento para criar uma equipe de som, a que deu o nome de “Amplisound”, onde trabalhavam outros que merecem capítulos  à parte sobre as confusões involuntárias que aprontavam.
O som tinha mais de trezentas caixas, uma pilha de amplificadores, um monte de cabeçotes valvulados para amplificar as caixas de palco, além de instrumentos de toda sorte e quilômetros de fio embolado.
Em sua casa Alceu montou dois estúdios, onde gravávamos horas e horas de propaganda que rodavam nos eventos.
O som tinha um ônibus que merece um livro, uma Kombi que pegou fogo algumas vezes e uma caminhonete que até me serviu de cama no frio da Serra da Mantiqueira. Tudo era usado como estúdio, casa, refeitório e inclusive meio de transporte.
Alceu era o diretor, dono e motorista. Eu era o locutor que subia no palco, operava o equipamento durante o dia, ligava e desligava tudo, gravava os comerciais e, algumas vezes, viabilizava a venda dos anúncios para os fazendeiros e expositores das feiras.
Dependendo do evento, usávamos o ônibus e as trezentas caixas ou a camionete e meia dúzia de caixinhas ou a Kombi e algum equipamento complementar. O Amplisound fazia sucesso sonorizando feiras agropecuárias, concursos leiteiros, aniversários de cidade, natais, cavalhadas, congados, rodeios e similares. Num mesmo dia, eu narrava de um rodeio a uma efeméride religiosa.
E como comíamos mal! Nosso cardápio se resumia a churrasquinhos de gato de barraquinha com fanta laranja.
São muitas as histórias que podem ser contadas, desde a da vaca leiteira que comeu tanto que empanzinou e teve de ser operada ali mesmo, em plena exposição, tendo sido retirado dela um morro de capim, até os banhos que tomávamos em uma caixinha de madeira de um metro quadrado, no meio das estrelas da exposição, as donas vacas. Isso sem falar na semana inteira que passamos sonorizando uma feira em Perdões, em um parque sem água. E sem banho.
E ainda nem falei do dia em que chegamos a Campo Belo: um vendaval havia destruído todo o parque de exposições. Não havia nada em pé. Dormimos no ônibus e pela manhã montamos tudo. E teve exposição. Com água.
Alceu tinha uma cabeleira que, em meio a poeirada e à falta d´água, ficava parecendo, como ele mesmo dizia, corda de bacalhau. Os ajudantes, Bolão e Cabeção (que nomes) eram umas peças. Cabeção meio distraído, Bolão distraído e meio.
Quando as vacas estavam magras, na falta de exposições agropecuárias (nunca uma expressão popular teve tanta aplicação como aqui) o criativo Alceu inventava um jeito de “operar” a praça.
Usando a Kombi e um praticável, fazíamos shows infanto-juvenis.  
Alceu mandou fazer uns bonecos de pelúcia cabeçudos para a gente entrar neles e brincar com as crianças (e às vezes apanhar delas).  Não me perguntem que personagens representávamos, pois os bonecos eram desconhecidos. Bem feitinhos, mas quentes que só o diabo. Isso sem falar no cheirão de mofo que iam adquirindo.  Muitas vezes tive de me vestir de palhaço usando uma fantasia feita para um cara com a metade do meu peso.
E é aqui entra o que quero contar: a história do Mário. Todos os personagens das histórias do “som do Alceu” merecem citações, mas o Mário é especial. Eu ainda não o conhecia bem, a não ser como vitrinista de uma famosa loja de tecidos e como figura imprescindível nos desfiles das escolas de samba. Sempre aparecia enfiado em umas fantasias engraçadas, concebidas por ele, como a do palhaço gordo, imenso, que se balançava quando ele sambava.
Bem mais velho que nós, negro e solitário, Mário era uma figura que só convivendo pra entender.
Certo dia, eu transmitia um evento  sonorizado pela trupe do Alceu. Do nada, subiu ao palco uma velha cantando “Marvada Pinga” em alta rotação. A velha dublava a música, fazia uma coreografia maluca e era retirada por “dois sordado” como dizia a letra da música. Ótimo. Quem era  a velha? O Mário.
No Natal, num dos shows com os bonequinhos, o Mário sobe no palco do caminhão da prefeitura vestido de Papai Noel, com direito a saco de brinquedos e tudo.  Eu era o locutor do som. O Mário era o Papai Noel a distribuir balas e doces. Alceu e o resto da trupe abraçavam e sorriam para as criancinhas, todas pequeninas.
Mário pegava uma criança e beijava outra e cantava e dançava. Após uns vinte minutos de performance, a roupa do Mário-Noel havia quase desaparecido. Os botões do casaco tinham ido embora. As partes brancas da fantasia, de algodão, desapareceram como curativos de bêbado. A própria barba, antes imensa, era agora um conjunto de fiapos de algodão. O gorro sumira e os cabelos, antes brancos, tinham ficado pretos de novo.
Resumindo, o  Papai Noel se transformara em mendigo-noel. Ao invés de ir embora, Mário continuou até o fim. Certa vez tive de interpretar esse Papai Noel, já com a fantasia consertada, pois Mário não pudera ir e só fui avisado na hora, acho que de propósito, para não ter tempo de desistir.
Depois vim a saber que o Mário era antigo amigo da família de minha esposa. Fomos visitá-lo e ele nos visitou. Tive em casa várias de suas pinturas feitas em tacos de assoalho. Ele nos presenteou  com um artefato de metal para guardar fósforos, uma obra-de-arte. Deu um carrinho de metal a meu filho. Eram obras feitas por ele e que enfeitavam sua casa, no meio de tantas outras coisas criativas.
Década de 90, já morando em Juiz de Fora, encontrei Alceu em um supermercado. Estava casado, com filhos. Disse-me estar trabalhando também com telão, além de som. Foi a última vez que falei com ele.  Soube que falecera algum tempo depois. Nunca soube sua idade, mas acho que ele se foi cedo demais. Até hoje carrego saudade de sua risada tapando a boca e de sua cabeleira de corda de bacalhau.
Soube que o Mário se foi há pouco. Esteve doente e poucos souberam. Tinha uns oitenta anos, eu acho.
Não pude ver nenhum dos dois pela última vez, mas carrego a imagem da risada do Alceu e as tiradas engraçadas do Mário.
Carrego comigo a gratidão ao Alceu por um dia ter me indicado para diretor de jornalismo da FM Sucesso. Carrego as lembranças da véia da marvada pinga. Carregamos a caixinha de fósforo e o carrinho.
Nessas lembranças é que vejo que o que fica, de tudo que se vive, são as coisas mais simples.
Estejam onde estiverem, meus amigos, espero que se divirtam com essas histórias, porque eu  me divirto quando me lembro de vocês. Só isso pode espantar a dorzinha que se insinua quando a saudade bate.