As minhas histórias são diferentes das dos outros por um motivo: só escrevo quando estou muito alegre ou muito triste ou muito saudoso. Ainda não sou aquele profissional que consegue escrever sem esforço... pra mim, tem de ser carregado na tinta. Gosto de fazer rir e às vezes, refletir.
sábado, 28 de dezembro de 2013
Nada de novo no front. A não ser a renovação da indignação.
No Ano novo a gente deve começar renovando votos de um monte de coisas. Vou começar renovando votos de indignação.
Nada do que vi é exatamente novo, mas dói quando a gente vê de perto. Nunca me considerei à parte da realidade, muito pelo contrário.
Vida afora convivi com a dificuldade, seja no jornalismo - profissão que exerci conhecendo misérias de toda sorte - seja na atividade que escolhi na indústria farmacêutica, quando visitei - aos montes - ambulatórios e hospitais onde nunca falou sofrimento e abandono, seja como advogado, quando trabalhei de graça até cansar, literalmente.
Com o tempo, anos a fio, de carro, indo e vindo para o trabalho, convivendo com pessoas empregadas regularmente, acabei me acostumando a ouvir e ver, apenas no rádio e na TV, mazelas que parecem estar longe, mesmo quando perto, no bairro em que a empregada mora, há algumas quadras. As notícias chegam misturadas, vêm do Iraque e do Afeganistão, da Índia e da favela ao lado.
Com medo da noite, acabei por não ver nem sentir mais a miséria dos que vivem e convivem debaixo das estruturas mais improváveis da cidade, comendo o resto do luxo, que vira lixo, acentuando uma pronúncia afrancesada à comida que sobra das casas dos que podem.
Nada disto é novo, obviamente.
Acostumamo-nos às notícias sobre as mais absurdas práticas de corrupção, alienação, maldade, distanciamento, frieza, incompetência e estupidez de muitos de nossos ditos representantes, pessoas eleitas - sei lá eu como - por todos nós para exercerem uma atividade que deveria ser a mais nobre, a mais justa e a mais sagrada de todas, que é, a troco de um salário justo (todo mundo precisa viver, claro), administrar o bem público para o bem do público.
E o que vemos? Enchentes anuais, com data e hora marcadas, serem consideradas tragédias, quando rotineiras já são. Repetem-se desmoronamentos e mortes e são responsabilizados os que constroem onde não podia ser construído. Estradas tornam-se armadilhas e são culpados os incautos ao volante e somente eles. O impostômetro dispara, a criatividade dos governantes em transformar o sistema fiscal em derrama é infinita. A administração do bem público é uma lástima, a vermos como estão os hospitais e unidades de saúde, com filas de meses. E não de pessoas com urticária... são infartados e sequelados de derrames cerebrais os que ali esperam. Enfim, só me resta renovar os votos de desamparo e indignação com toda essa lameira cansativa.
O ano começa e lá vamos nós a trabalhar cinco meses para pagar impostos, convertidos em serviços da mais baixa qualidade. E lá vamos nós ver nossos holerites mastigados pelo imposto que se vai, compulsoriamente, para ser usado do jeito que estamos vendo, nos desmandos que permitem coisas como as que vi neste final de semana.
Dizem que não se deve dizer à mão direita o que a esquerda faz, mas aqui não se trata de autobajulação. Fui visitar uma creche. Filantrópica. Descobri que não é permitido fazer doações à mesma. Por lei, doações só podem ser feitas à Prefeitura, que se incumbe (ou deveria se incumbir) de distribuir os tais donativos a todas as instituições de caridade. Ocorre que falta tudo no lugar, menos amor. São centenas de crianças, filhas de famílias em sofrimento, vivendo abaixo da linha da miséria material, social e cultural, cujas mães precisam trabalhar e não têm onde deixá-las. Ali se alimentam, recebem alguma educação, cuidados básicos. Algumas entidades doam recursos, rigidamente contabilizados e fiscalizados, do prego ao alfinete. São estes recursos, escassos, que permitem alguma obra aqui e ali, algum reparo. O resto tem de vir da criatividade dos abnegados que trabalham de graça organizando forrós e shows beneficentes para recolher o básico que alimenta boquinhas famintas que ainda precisam levar algo para casa, onde falta tudo.
Como disse, nada é novidade. Só que fui ver, sem câmera, sem microfone, para tentar ajudar. Ali vi os que, baseados em uma doutrina religiosa, se inspiram em uma força chamada amor para fazer um belo trabalho não remunerado pelos homens. Enquanto isto, políticos - que deveriam ser movidos por paixão semelhante - continuam engravatados, comendo do melhor, andando de avião público, implantando cabelo, exercendo uma autoridade pesada e uma incompetência deslavada, cuspindo na nossa cara em todos os noticiários.
E o que mais indigna é a ignorância da gente que vota neles sem parar.
Descobri, abismado, que muitas das crianças, já aos seis anos, aprendem a liderar pequenas "gangues" de malandrinhos para engambelar monitores, dizendo se espelhar nos traficantes de seus morros e vielas, jovens que andam "com dinheiro sem nunca ter estudado”.
Descobri que pequeninos, de meses, recebem uma troca de fraldas na sexta-feira e voltam na segunda seguinte com a mesma, muito pior do que saíram, sofrendo assaduras e micoses.
Descobri que algumas dessas pobres mulheres engravidam e querem desistir imediatamente do filho, mantido na barriga às custas de conselhos cristãos e promessa de adoção, o que é conseguido pelos abnegados em sua luta pelos complexos trâmites legais.
Descobri que pobres criaturas podem ter até dezoito filhos durante a vida sem nunca, mas nunca, poder usar qualquer método contraceptivo pois o “marido” não permite:“É pecado”.
Descobri que existem muitas dessas meninas, meninas sim, que acham que utilizar crack é bom para emagrecer. “Você já viu fulana, como emagreceu?”
JESUS, O QUE É ISTO? Como ouvir uma coisa dessas e não se embasbacar? O que fazer? A coisa é bem mais complicada do que imaginamos.
Há tempos descobri, em um cantão desse Brasil, que uma infestação pelo famoso bicho-de-pé (o Tunga penetrans) era um verdadeiro desastre a ponto de quase fazer as moças perderem seus artelhos por absoluta falta de higiene. Detalhe: artelhos com esmalte! Não há limpeza básica, mas há esmalte. Algo está invertido aqui.
Diante de informações como estas, o que me resta a dizer é que o problema de todos nós é muito mais de absoluta falta de informação básica do que qualquer outra coisa. Crianças morrem de diarreia, a dengue aumenta quando sabemos que bastam alguns cuidados simples para erradicar o mosquito e por aí vai.
Não falo das escolas, pois isto é merecedor de um capítulo à parte nesta coletânea de indignações. Digo apenas que, tirando algumas públicas nas quais a abnegação das próprias professoras e dos pais é que as mantêm em um nível aceitável, a regra é que escola pública de base é problema, é lotada, é carente de espaço, estrutura e material para as profissionais trabalharem e ninguém ou quase ninguém se importa mais. É “normal”, faz parte do cenário.
Renovo meus votos de indignação para 2014.
E para não dizer que não falei das flores, apenas lembro que resta a cada um de nós fazer alguma coisa com nossas próprias mãos pelo problema que está mais próximo.
Não é necessário esperar o poder público, é possível colocar a mão na massa, doar tempo, doar alguns reais, ir à luta, conhecer, apoiar, fazer uma pequena diferença, por uma criança que seja. Uma.
E que na hora de nosso voto ou de explicar a importância dele aos nossos atendidos, possamos ser bastante claros. Chega de distanciamento. Não dá para votar em quem nunca aparece a não ser para pedir o raio do voto e desaparecer por quatro anos, quando voltam para pedir mais em troca de migalhas.
Assim não dá. Mãos à obra sem alarde. Por aquele ali, ali mesmo, na favela ao lado, que está precisando de sua mão, de sua conversa, de seu apoio, de seu entendimento, de seu apoio material. Um só está bom.
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