domingo, 12 de junho de 2011

O RÁDIO, O FUTEBOL E EU


Antes de trabalhar com vendas, fiz muitas coisas. Nunca fui do tipo prático, que conserta ou monta coisas. A última coisa que me meti a montar foi uma casa de passarinho para meu filho, que ficou parecendo um monte de lixo em cima de um cabo.
Com essa vocação para coisas práticas, a única coisa que aprendi foi pintar parede, lavar carro e colar. É, sei colar coisas que se espatifam, especialmente quando caem de minhas mãos estabanadas.
Tentei o teatro, mas as experiências foram mais ou menos, especialmente no campo financeiro. No palco, estereotipava os personagens quase estragando tudo em nome da irreverência. 
Depois de algumas peças, textos mal ajambrados e um curso de cinema em 1975, fui para o rádio.
Não consigo me esquecer dos quilômetros cansativos percorridos na escada de acesso à rádio. Nunca vivi um processo tão complicado, acho que não me queriam. Sei lá por que, talvez fosse muito novo,  talvez tivesse voz ruim.
Fui  locutor, redator, repórter, produtor e vi muita grana. Em sonho. Aproveitei  então o tempo para ouvir histórias, vivê-las e registrá-las.
Como essa.
Era um sábado cinzento e eu, estagiando, cheguei para ajudar em um programa de auditório sem auditório. Só que não havia programa. Locutor e técnicos estavam saindo para o estádio local para transmitir um amistoso entre o dono da casa e um time da terceira divisão do Rio de Janeiro. Fui junto.
Antes, passamos no centro para ver o time visitante ser fotografado em traje de gala. Chegamos e o estádio estava quase lotado. Fomos para a cabine (se é que aquele quadradinho de concreto era mesmo uma cabine).
Antes de qualquer coisa ser ligada, o locutor colocou seu imenso fone de ouvido, equipamento imprescindível para que todos soubessem que ele era o cara da rádio. Ou um marciano.
Era engraçado: ele berrava ao conversar conosco e nem tanto barulho havia assim. Descobri que ele ficava ouvindo a rádio, no fone, numa altura desesperada e, para falar, ele se esgoelava. Achava que só o ouviríamos se ele também se ouvisse. Enquanto isso, o técnico ajeitava as coisas por ali, tapando os ouvidos como podia.
Começa a peleja e o locutor começa a narrar. Narrar não é bem o que ele fazia. Digamos que ele zurrava.
- Bola com o jogador que é o... o... número 7 (aí procurava na lista) fulano! Opa, agora já tá com o jogador que é o... caramba, passa a bola pra alguém do time da casa, pelo menos assim eu sei no nome... E tome gritaria na narração. Eu tinha absoluta certeza que as pessoas do estádio poderiam ouvi-lo sem rádio. Acho que até na minha casa o rádio poderia ser dispensado e olhe que eu morava há uns dez quilômetros.  
Fala o comentarista, dizendo aquelas coisas que os comentaristas dizem, ou seja, nada. Fala o repórter de campo, bufando, pois havia corrido até o banco dos reservas em busca de uma palavra do técnico do imponente time visitante. Não entendi nada que ele perguntou. E olha que eu estava ali no meu ladinho, com meu ouvido colado num radinho de pilha. Ninguém como eu, anos depois, entendeu tanto os Titãs, com sua Sonífera Ilha, especialmente naquela parte de colar o ouvido num radinho de pilha numa ilha sonolenta. Aquele jogo estava me dando sono.
De repente, chuva. Normal, chuva em futebol é até legal. O campo não tinha uma drenagem boa, de forma que lagoas se formaram. De lagoas passaram a açudes. De açudes a uma grande represa. As arquibancadas não eram cobertas e o respeitável público começou a se molhar. A cidade já não é nenhum exemplo de lugar quente.
A chuva começou a apertar. Chovia baldes. A água batia na gente por atacado. Claro que não dava mais pra jogar, ninguém enxergava nada. O juiz suspendeu o jogo e tenho a impressão de que o apito só serviu para oficializar uma coisa que já tinha acontecido. Havia mais de meia hora que não se via jogador, bola, gandula, campo, nada.
Os únicos lugares aparentemente seguros ali, já que faíscas caíam como serpentinas junto a  caçambas d´água, eram as cabines das rádios. Cada uma das duas mal suportava quatro pessoas e as traquitanas eletrônicas valvuladas, naquele momento  já transformadas em sucata queimada. E a água entrava pela frente e pelos lados como cachoeira.
Milhares de torcedores entravam em qualquer coisa que tivesse uma cobertura e as cabines eram vistas como ótimo abrigo. De repente, uma senhora resolve passar mal. Era uma vizinha. Saí da frente para que ela entrasse esfregando o peito: - ai, eu sou infartada... estou passando mal... o locutor, com seu inseparável fone de ouvido disparava ordens: - aqui não cabe mais ninguém, dona...tira o pé daí... minha senhora, aqui não é lugar de morrer... morre mais pra lá...
Quem quase morreu foi ele. Um estampido ao lado da cabine fez todos se atirarem ao chão e o locutor gritar com um choque, pois o vi atirando o inseparável lá no meio das arquibancadas. Dizem que isso faz ficar surdo. Se é que ele já não era.
Resumindo a ópera, meu primeiro e último jogo de futebol, acompanhando uma equipe de rádio, não terminou. E nunca recomeçou. Depois da chuva, ali estava uma situação pós-apocalíptica. Era gente correndo, equipamentos estragados, um frio siberiano, empurra-empurra, pisoteadas, choro e ranger de dentes.
Não sei se esse foi o motivo que me afastou do jornalismo esportivo. Sei que não fui convidado para nenhuma outra jornada. Acho que eles pensavam que eu dava azar.
Anos depois voltei a um estádio.  1989, Maracanã, no meio de uma equipe de mais de duzentos colegas em plena convenção de vendas. Fomos ver Brasil e Chile. Sim, exatamente aquele que não terminou. Acabou por causa de um foguete jogado perto do Rojas, goleiro do Chile, que fingiu ter sido atingido. Sim, eu, como bom Forrest Gump, estava lá. Mais um jogo não terminado no meu currículo.
Só que não desisti. Fui ao Mineirão duas vezes para ver meu Cruzeiro perder. No Maracanã vi um Brasil e Colômbia, que de tão ruim me fez dormir.  No Palestra,  vi meu Flamengo perder duas vezes do Palmeiras. Acho que das vezes em que me meti a assistir um jogo ao vivo, o único dia feliz foi no Orlando Scarpelli, em Florianópolis, quando vi o Brasil fazer dez gols, sete válidos, em Trinidad Tobago.
Não dou mesmo muita sorte em estádios. A única coisa boa até hoje, de verdade, que aproveitei, foi o feijão tropeiro do Mineirão. Nem precisa saber que jogo está acontecendo, até porque meu time sempre perde. Tendo o feijão, está tudo certo.

Em tempo: em 2014, vou ver a Copa pela TV.

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