quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Tudo, menos parar de rir.



Há um ditado que diz que rir de tudo é desespero. Aliás, esse adágio está numa música do Frejat. Falam por aí que só os humanos riem, mas desconfio que minha cachorra ri de vez em quando.

O formato da cara dos golfinhos denuncia um sorriso que os biólogos afirmam não existir, mas teimo em achar que é real, deduzindo o jeito como interagem, inclusive conosco.

Nem vou falar de uivos, gorjeios, grunhidos e ronronares, porque logo aparecerá um explicando que são provocados por fome, necessidade de acasalamento, frio, medo, tudo, menos felicidade.

Nós, humanos, somos metidos à besta, sem trocadilho. Achamos que Deus nos fez à Sua imagem, que Deus fala através de nossas palavras escritas em papiros, que Deus se ofende com nossas coisas e que Deus só permitiu o riso a nós.

Se um dia me pegarem fuxicando num formigueiro com um estetoscópio, não me internem; provavelmente estarei tentando ouvir a risada de milhares de formigas. E como deve ser divertido.

Entendo a letra do Frejat. Rir sem parar é insanidade. Os casos de desvio de nosso dinheiro não têm a menor graça. Os crimes que se repetem, impunemente, tampouco.

No entanto, continuamos respirando. É nesse sentido que defendo que rir é tão fundamental quanto respirar e nada tem a ver com falta de seriedade. A cara séria de todos os ministros defenestrados pela Presidente nos mostra como atitudes nada sérias podem ser estampadas em caras sisudas.

Rir é uma atividade fisiológica despertada pela sensação instantânea de prazer, de felicidade, de graça, do inusitado e de tudo o que nos remete à infância, à molecagem sadia, à bobeira adolescente. Rir libera endorfina e relaxa.

Uma gargalhada demorada acalma que é um absurdo. Rir até cansa, dizem alguns. Não é cansaço, é um relaxamento que melhora todas as funções orgânicas e nos devolve o sono roubado pelas aflições.

Isso é tão verdade que o mercado de humor anda de vento em popa. Quantos pagam para dar algumas risadas, nem que seja da desgraça e dos defeitos alheios? O humor negro é um sinal de que algo não vai bem, pois não faz muito sentido rir da miséria de outrem.

Quando pequeno, por volta dos dez anos, fiz amizade com uma trupe de circo. Todo o aparato mambembe cabia em um velho e pequeno caminhão, dirigido pelo dono. Na boleia ia a esposa e atrás, numa cabine de lona, seguiam os dois jovens filhos. Nada de bichos. A trupe só visitava pequenas cidades de três a cinco mil habitantes, provavelmente porque ali estava o público mais carente de novidades, onde a televisão não chegava muito bem (lá, na cidade a qual me refiro, era péssima, naqueles anos setenta).

A família-trupe erguia sua lona nos arredores e foi numa dessas cidades que pude vê-los montar e desmontar o "espetáculo", almoçar com eles, vê-los à paisana.

À noite, custava-me acreditar que o casal em cena, rosto branco de tanta maquiagem, sob luzes montadas em velhos tripés, era o mesmo que martelava arquibancadas, fazia o almoço, lavava as roupas e as louças. A voz de ambos era forte, estridente, límpida. O ritmo e a marcação de cena, impecáveis. As anedotas engraçadas e inocentes.

O texto, limpo feito água, narrava a rotina de um casal atrapalhado do interior, bem estereotipado. Era disso que a gente gostava. E o povo ria daquelas simplicidades, daqueles trocadilhos que se insinuavam maliciosos, mas passavam longe de qualquer maldade. Eu absorvia cada palavra, cada tirada, cada entrada e saída de cena, hipnotizado.

Depois do humor, a filha do casal, vestida de índia, se apresentava. Vinha toda maquiada para cantar sobre cacos de vidro e brasas acesas, para espanto de todos (até hoje não sei se aquilo era mesmo real). Meus olhos não conseguiam se desprender daquela imagem de moça morena, cabelos pretos, longos, que depois me lembrariam os de Iracema, a Virgem dos Lábios de Mel de José de Alencar.

O filho do casal, um jovem alto e magro que emprestava seu nome ao circo, não carregava o talento cênico dos pais, mas cumpria da melhor forma que podia seu papel, fazendo algumas mágicas interessantes e engolindo fogo.

Todos ali eram atores, palhaços, malabaristas, engolidores de fogo, mágicos, caminhantes sobre vidro, cozinheiros, motoristas, lavadeiros, passadeiros, brasileiros, sofredores e... engraçados.

Riam o dia todo trabalhando para o espetáculo. À noite faziam rir a pequena plateia de, quem sabe, vinte ou trinta por sessão, a cinco cruzeiros o ingresso. A preço de hoje, uns dois reais.  Eu, lógico, amigo deles, entrava de graça e isso me dava um orgulho lascado. Assistia o espetáculo diversas vezes, para rir das mesmas coisas, tudo igualzinho, sem tirar nem por. Para compensar, ajudava na divulgação.

Hoje, quarenta anos e muitos espetáculos diferentes depois, continuo me lembrando da missão daquela família simples, humilde, talentosa e sorridente, que vivia rindo e fazendo os outros rirem, levando alegria genuína àquelas paragens onde só a simplicidade existia.

Ali tudo era singelo: a comida, a bebida, o futebol, a religião, a política, os romances, a rotina, a linguagem, a dor e o sofrer. Mas lá estava, no meio de tudo, o rir e o fazer rir. Uma necessidade tão velha e simples como comer e dormir.

Um comentário:

  1. Muito bom Jairo!!! sinto falta de dar rizada com vc :) bjos

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