quinta-feira, 5 de maio de 2011

Eu e a Moto II

Um amontoado de linhas não basta para contar minha odisseia com motos. Se a história anterior não lhe convenceu que nasci para andar motorizado sobre quatro e não duas rodas, acompanhe isto.
Tinha uns 19 anos. Um velho amigo da rádio, pai de família e tudo, me aparece aboletado numa moto. Nem sei se era dele. Pleno carnaval.
- E aí? Gostou da maquinona?
- Legal.
- Vamo nessa?
- Nessa o quê?
- Nessa moto aqui, seu.
- Não, obrigado (Ele me pareceu meio tonto).
- Vamo lá, cara. A gente passa no Meia-Lua*, aquilo lá tá saindo mulé pelo ladrão.
- Han... mas se elas derem mole, onde vamos levar? Aí só cabem dois.
- Se EU me der bem, VOCÊ tá fora.
- Nada como uma boa dose de sinceridade.
- Mesmo assim, tá valendo o convite. Pensa... você, com essa pinta de locutor, numa moto, na frente daquela mulezada...
Sempre disseram que minha imaginação era fértil. Hoje não tenho dúvida: coloquei meus óculos escuros e me vi um genuíno Chuck Norris (esse era o cara, como dizem hoje).
Logo me vi enfrentando as ladeiras de Barbacena. Sei lá que moto era aquela, fiz questão de esquecer. Não gostei dela. Criatura sem originalidade, empinou comigo. Não entendi. Dessa vez o sujeito era tão gordo quanto eu, não podiam me acusar.
Após uma arrancada pouco chucknorriana e uma empinada sem nenhum charme, a moto bateu forte com o pneu da frente num buraco, fazendo meu queixo trombar no capacete do meu amigo, que, com isso, tonteou. Com o queixo doendo e uns dois dentes bambeando, senti aquele gosto típico de “zinabre”. Como conferir se aquele gosto era sangue mesmo?
Ziguezagueamos em velocidade imprópria para dois obesos, por uns duzentos metros pela avenida esburacada onde morava minha tia, que, para piorar o quadro, estava com todas as filhas na varanda vendo o maluco do sobrinho agarrado naquelas coisas que ficam atrás da garupa, balançando a barriga e gritando: ou ou ou ou oooooo... e uma segunda voz sem entonação gritando na frente... eeepaaaaa... seguuuraaaa...
Quem já viu uma moto fazendo isso sabe o fim. Pois não aconteceu.
Sei lá que santo pôs a mão, mas conseguimos ir reto por mais ou menos duzentos metros até fazer uma curva à esquerda depois da praça, rumo ao cenário do carnaval. Mal respirava aliviado por não ter me ralado todo, quando surge outro desafio: uma inexorável ladeira (tudo em Barbacena acaba e termina em ladeira). O domador da fera reduziu para que ela aguentasse subir com a carga dupla de banha.
Acho que ele não sabia guiar não. Na debreada, senti que meu traseiro saiu da moto. Estava no ar. Dava pra sentir um vento diferente no Sul. Vinha descendo um fusca azul, com um adesivo no vidro da frente: ”Só Jesus Salva”. Tentei rezar ao menos a frase, mas, de novo, morro acima, a moto ziguezagueou e empinou. Ou o contrário, sei lá. Para não bater no fusca, que descia peidando como seus similares, meu amigo deixou a moto cair pela primeira vez. E com ela, ele e eu. Ela por cima de mim. Ele por cima dela. Não houve qualquer arranhão. Na moto. Eu ralei o joelho direito. Abriu um buraco pequeno, nada sério. Tirei as pedrinhas de dentro do joelho, meu colega sacudiu a poeira, levantou a moto, contemplou-a maravilhado.
- Nem um arranhão! Perfeito.
- Ugh... agh... q-que b-bom... ui. (As costas doíam, o joelho ardia e eu podia perceber que o gosto de zinabre que senti lá atrás era mesmo proveniente dos meus dois dentes de baixo que bambearam).
- Vamos nessa! Errê... (definitivamente, ele tinha bebido e não devia ter sido pouca coisa).
- Não... já deu por hoje.
- Deixa disso, sô. Nem arranhou, olhaí. (Apontou exatamente para o joelho sadio).
- Não, dá pra ir a pé pra casa, fica tranquilo, segue em paz, vai,  boa sorte com as mulé... ui.
- Tá longe, sô. Sobe aí, o Meia-Lua é logo ali, já-já vamos ver a mulherada.
Tentei resistir, mas o argumento era bom. E vinha a imaginação: era agora um Indiana Jones com ferimentos. Um conjunto sedutor: moto, óculos escuros, dentes esmagados e joelho arranhado. Charme bizarro, por que não?
Subimos outra ladeira mais leve, viramos à direita e lá estava o castelo dos sonhos de todo adolescente da época em Barbacena: aquela rua atolada de gente, um bloco batucando um samba arrítmico, cinquenta desafinados cantando algo como bandeira branca amor não posso mais e um monte de garrafa de cerveja vazia espalhada na calçada. Aquilo era o paraíso.
- Viu, viu? Valeu ou não valeu um tombinho de nada?
- É, mas mulé que é bom não vi ainda. Só tem marmanjo, olha lá.
- Não, tem mulé também... é que a gente tá longe e elas ficam mais dentro do bar.
- Dentro? E por acaso o Meia-Lua tem dentro? Se tivesse mulé já dava pra ver daqui. Roubada, viu...
- Cara chato, você. Vamo lá que eu te mostro se tem ou não tem o que a gente gosta lá.
Arrancou com tudo, o suficiente pra que eu pudesse ver umas meninas até que bem apanhadinhas, pelo menos nos míseros segundos que tive para ver alguma coisa até tudo escurecer.
Nunca me esqueci desses últimos segundos de imaginação. Era agora o Steven Seagal, quase a descer da moto com toda a panca, olhar ao redor, apontar para a loirinha de shortinho e dizer: hello. E as demais suspirando. Pronto. Só vi a loirinha e tudo já saiu do ar.
Claro que todo mundo entendeu. Acordei num hospital e pensei que tinha morrido. Só que, diferente do cinema, não vi nenhum rosto desfocado à medida que acordava. Sabe aqueles rostos enormes, em primeiro plano, entrando em foco aos poucos, aquela voz de caverna...nada. Vi só uma enfermeira saindo e dizendo “pronto, já acordei o dorminhoco”. Acho que ela esfregou alguma coisa no meu nariz e na minha boca, porque meus dentes doíam mais.  Minha imaginação não conseguiu produzir nada cinematográfico. O que escutei foram os berros do meu amigo. E o gosto na boca era de sangue mesmo.
Um enfermeiro com um cotonete gigante de ponta vermelha pintava as canelas do pobre coitado enquanto dois outros tentavam segurá-lo no leito. Aquilo devia doer muito. Como esperneava o homem. E fazia caretas. E gritava. E blasfemava.
Ainda sentia meus olhos doendo de tão arregalados com aquela cena quando um dos enfermeiros virou-se para mim com ar de Coringa do Batman:
 - Arrá... aí está você. Já vamos cuidar de seus ralados. Fica tranquilo.
- Não precisa não... olha, já estou bom!
Tentei sair e mostrar a eles que não precisavam se preocupar comigo, mas cadê. Doeu tudo. Parecia que tudo estalava. Doía costela, cotovelo, joelho.  Foi aí que vi que tudo estava ralado, especialmente o joelho direito, que ganhou mais uns centímetros de profundidade.
- Quieto aí, sô. Num tá vendo que tá todo ferrado? (Virando para os outros) -  Jão, Ademirso, deixa esse aí e me ajuda aqui com esse chupetinha de baleia.
Não gostei da intimidade. Um dia fui contar esse apelido a um amigo de trabalho e tive de suportar gozação por um tempão.
Lá vieram os dois e gentilmente me seguraram enquanto o dono do cotonete gigante embebia o danado num balde escrito “merthiolate”. Não era esse mertiolate incolor e sem dor que existe hoje... era aquele vermelhão mesmo, terror das crianças machucadas e adolescentes ralados.
- Vamo lá, pessoal... é um e dois e... (não me arrisco a fazer aqui a onomatopeia proferida). Acho que foi a dor mais horrorosa que já senti na vida, perdendo só para a primeira cólica renal que tive anos depois. E o enfermeiro se divertia pintando tudo com aquela tinta dos diabos, enquanto outro anestesiava o joelho e já ia dando os pontos necessários e um terceiro pegava outro cotonete de Itu e besuntava meus braços. Na lateral direita, o enfermeiro-mor passava uma atadura para o enfermeiro da lateral esquerda, enquanto o centro-avante enrolava uns cinquenta metros de gaze e esparadrado nos meus joelhos. Encurtando a ópera: me colocaram de pé e eu me vi uma perfeita semi-múmia.
Meu amigo parecia semi-morto no leito e minha vontade era fazê-lo um morto inteiro, mas me contive e saí dali, mancando e agradecendo, pois, apesar de seu notório sadismo, os enfermeiros foram muito profissionais. Fiquei bom. Pelo menos da cabeça, pois nunca mais andei de moto, nem na garupa, nem guiando, nem bêbado, nem são.
O maior vexame foi à noite, ao chegar no stand da Rádio para transmitir ao vivo o desfile das Escolas de Samba. Com crachá da imprensa, era livre para circular por dentro do isolamento. Lá fora, os mortais. Aqui dentro, os imortais da Rádio. Lá estava de volta a minha velha e boa imaginação. Achava-me famoso, importante, envergando o microfone da AM Correio da Serra. Chegava a pensar que o mundo todo estava me ouvindo contar o acidente que me transformara em múmia.
Do lado de fora, algumas mortais meninas riam de mim todo arrebentado. Podia jurar que eram as mesmas que estavam lá no Meia-Lua. E isso não era imaginação.

*Meia-Lua: barzinho da moda na década de 80. Existe até hoje na região de São Sebastião, em Barbacena.

3 comentários:

  1. A história dessa vez é longa. Parece mentira, mas tenho testemunhas de que é verdade.

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  2. Morri de rir imaginando as cenas do galã à la Chuck Norris/Steven Seagal! O fofinho lá, aboletado na moto, com o traseiro fora do banco - um verdadeiro peixe fora d'água -e se arrebentando todo. Não uma, mas duas vezes! Desculpa, sei que vocês entraram pelo cano, mas não pude deixar de rir! hahahaha

    Continue escrevendo, Jairo! Tá bão dimais da conta, sô!

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