quinta-feira, 19 de maio de 2011

EU E O FUINHA

Tive um carro velho, não mais velho que muitas furrecas que ainda rodam.
A diferença é que eu sei o que passei com meu primeiro carro, um chevette 74, adquirido em 1986. Doze anos separavam meu primeiro carrinho de sua linha de montagem. Nem tão velho era. Eu o fiz ficar.
Comprei-o sem negociar. Tentei pechinchar, mas era minha primeira grande aquisição. A emoção de ter meu veículo, depois de anos mendigando voltinhas no carro do pai e dos amigos, não me permitiu negociar. Lembro-me do preço: vinte e dois mil qualquer coisa (não vou saber o nome da moeda, se cruzeiro, cruzado, cruzado de direita, lascas).
O banco me emprestou dez. Meu pai mais dez. E o cara não quis abrir mão dos dois. Naquela época, a oferta de carros não era como hoje. Andei procurando e só achei umas belinas podres e umas variantes em processo de definição da idade pelo carbono 14. Fuscas nem pensar, muita manteiga pra pouco pão.
Acabei ficando com o chevelho 74, mostarda, pneuzinhos mais pra meia-boca que pra meia-vida. Minha avó, que passou boa parte da vida sonhando em me dar um carro, raspou a conta e me deu os dois que faltavam.
Não me importei com o impregnado cheirão de bograxoleolina*, nem com os paralelepípedos e pés-de-moleque que passavam céleres quando eu olhava pra baixo, entre os pedais.
Estacionei na entrada da rádio onde trabalhava e saí girando o chaveiro após bater a porta e ouvir um barulho diferente de todos os barulhos portais que já tinha ouvido. Algo como um  “póó” agudo, seguido de um eco. Não havia de ser nada.
O locutor do horário era o Walmir Leporatti, compositor e cantor dos bons, um cara que mantém um pé na terra e outro na poesia. Foi ele que, ao ver pelo vidro do estúdio o meu mostarda, disse:  -  Legal o seu fuinha.
- O meu o quê?
- Seu fuinha. O nome que dei pra ele lá.
- “Ele lá” é o meu carro!
- Ah, lógico, claro...
- Não gostou dele?
- Claro que gostei. É uma singularidade! (Até hoje não sei se isso foi um elogio).
Logo o levei para minha namorada (hoje minha esposa) conhecer. Ela morava meio longe e eu ia quase todo dia lá a pé. Com o fuinha pudemos passear mais longe, algumas vezes nos perguntando porque levar o chevette.
Eram estradas de terra, calçamentos irregulares, buracos, barbeiragens e falta de manutenção. Acreditem, convivemos mais de dois anos, mesmo não sendo eu um sujeito muito dado a capricho.  Só lavava o fuinha de vez em quando. Até porque na terceira lavada ele ameaçou mudar de cor. Passei a lavá-lo com menos frequência e ímpeto.
Certa vez entrei num supermercado onde o estacionamento escuro parecia um labirinto. Bati com a frente do fuinha no fim da vaga achando que era mais comprida. Afundei o que restava do para-choque e a cara dele ficou ainda mais afuinhada.
Aconteciam coisas nele que nunca vi em carro algum. Ao desligar e tirar a chave do contato, ele permanecia funcionando e só parava quando eu desligava o farol. Outra: ao acionar o pisca-pisca, o esguicho de água funcionava. Dependendo do dia e da vontade dele, buzinar podia ser fatal, pois ele morria. Isso sem falar na paisagem do assoalho que aumentava cada vez mais. Quando chovia entrava tanta água que só arregaçando as calças.
Belo dia, no meu programa na rádio, anunciei na bolsa de empregos uma vaga num laboratório farmacêutico. Pagavam bem, exigiam segundo grau completo, boa comunicação e carro.
Pensei comigo: tenho terceiro grau, comunico-me por profissão e tenho o fuinha. Fui fazer o teste. Sessenta candidatos a uma vaga. Psicotécnico, cálculos, conhecimentos gerais, entrevistas, fiquei na peneira até o final. Foi aí que o supervisor quis ver o meu carro.
Pelo menos estava recém-lavado e com os pneus engraxados pelo Maranhão (o nome de um profissional que lavava o fuinha sem tirar a cor). Estacionado em frente ao hotel, no meio de escorts, monzas, unos, estava o fuinha, muito humilde e muito mostarda.
- Qual é o seu carro? Essa foi a pergunta que eu mais temia em todo o processo de seleção.
- Ali... Apontei com o beiço na direção dos carros.
- O escort? Bonito...
- Não... o outro.
- Poxa, um Monza... carrão!
- Não... é aquele ali... disse com a voz quase sumindo.
- O Uno... carrinho fraco, mas está novo.... muito bom.
- Desculpe, mas você não acertou ainda...
- Como não? Já falei todos os carros que estão ali... menos aquela kombi e aquele caminhão.
- Não está vendo o chevette?
Ele firmou a vista, olhou pro fuinha, olhou pra mim de volta, olhou de novo pro fuinha e assim ficou por um bom par de minutos, até emitir o primeiro som.
- Arnft...aquele cor de... mostarda?
- É... é o único chevette da fila.
Desapontado, o homem atravessou a rua, rodeou o carro, olhou os pneus, espiou dentro e disse:
- Desculpe, não sei porque não reparei nele antes..
- Eu sei porque (pensei).
-  Olha, sem querer magoar, mas... dispensei uns três bons candidatos pra ficar com você...
- Ele aguenta.
- Não aguenta não. Seu setor de viagem será enorme.
- Por favor, ele aguenta. E eu preciso do emprego.
- Tem certeza? Vou ter de pular algumas regras de segurança da empresa e...
- Seis meses e eu troco.
Ele aceitou e eu comecei a trabalhar.
Viajava no fuinha quatro semanas por mês e ele sofreu calado. Nunca me deixou na mão. Destruído, motor retificado, com mais de quinhentos mil quilômetros nas costas, o valente fuinha continuava espirrando água quando eu ligava a seta, morrendo quando eu buzinava, fedendo a graxa, escorregando nas curvas.
Certa vez precisei cortar caminho para Ouro Preto. O chefe ensinou a usar uma estrada de Ouro Branco até lá. Disse que era uma estrada de cascalho, muito boa, sem buracos. Deveria ter dito cem buracos. Por quilômetro. Peguei a estrada de sessenta quilômetros e a buraqueira era tanta que os vidros das portas afundaram. Fiquei à mercê da poeirada pelos quase seis mil buracos nos quais entrei e saí.. até começar a chover. Todo empoeirado, recebia agora uma aguaceira das janelas e do assoalho. Não me sobrou uma parte limpa. Transformei-me, em alguns quilômetros, em um barranco humano. Cheguei a Ouro Preto no horário para me encontrar com o chefe. Pontual e imundo. O carro parecia um torrão. O chefe, na porta do hospital, ao ver aquela cena surreal, correu em minha direção.
- Nem se atreva a entrar no hospital desse jeito. Que aconteceu?
- A estrada que você me indicou. Ótima.
- Você pegou a estrada certa?
- E existe outra entre Ouro Branco e Ouro Preto?
- Troque essa roupa, tome um banho, vá para o hotel, lave esse carro...
- Tá bem, mas acho melhor não seguir essa sequência...
- Vá logo!
Estava de mau-humor. Pra variar.
O fuinha ainda não havia esgotado sua capacidade de me meter em fria. Num feriado prolongado, viajei sem ele e meu pai tentou dirigi-lo. Ele engasgou, cuspiu, morreu, falhou, só faltou falar que não aceitava outro motorista. Quando cheguei, meu pai sugeriu que eu me livrasse daquela “geringonça”. Como? Com que grana? Entrei no carro, virei a chave e... mágica! Funcionou perfeitamente. Nunca entendi isso.
Certa noite, minha avó no hospital, fomos visitá-la. De fuinha. A caminho, lotação esgotadíssima (meu pai, minha mãe, minhas duas irmãs e eu), a parte final do escapamento arrebentou. Estava podre, claro. O barulho passou a ocupar a sala de toda a vizinhança que tentava assistir novela. Seguimos caminho, o hospital tinha horário.
Na volta, o resto do cano acabou de soltar. Sabe aquela parte da frente, conectada no motor? Pois é, aquela coisa caiu no chão, onde ficou. Eu nunca tinha ouvido um barulho tão infernal, grave e estrondoso. E a família dentro, minhas irmãs gritando para eu dar um jeito naquilo. Como? Só desligando o carro no centro da cidade, no meio do trânsito. Foi aí que o fuinha endoidou. Parece mentira, mas a buzina, nesse momento, disparou.
Nada mais impróprio para o centro da cidade numa sexta-feira à noite. Não havia como parar. E, claro, esse é o melhor momento para ver amigos e conhecidos. E lá foi o fuinha berrando com minha austera família dentro, tapando os ouvidos.
Chegando em casa, meu pai abriu o capô, enfiou a mão nos fios da buzina e puxou tudo de uma vez.
- Praga de carro!
O prazo prometido ao chefe estava vencendo e eu já havia guardado algum para trocar por um carro um pouquinho mais novo. Por sorte o Delfim, colega de outro laboratório, tinha uma Brasília 78, super conservada e ofereceu-me em troca. Ele queria terminar de pagar sua casa.
Na verdade, eu comprei a Brasília dele e dei o fuinha e mais dois pneus novos de volta. Isso depois de jurar que o carrinho ainda aguentaria pelo menos seis meses. Acho que o fuinha me ouviu, pois aguentou.
Uns três anos depois, trabalhando em Lavras, motorizado com um carro da companhia, fui apresentado a um colega de profissão que só conhecia de nome.
- Ele é irmão do Delfim, que te vendeu a Brasília e ficou com teu Chevette.
- Ah, prazer... Delfim é um grande amigo. Seu irmão? Vocês são parecidos...
- Espera  aí... foi VOCÊ que vendeu aquele Chevette pra ele?
- F-foi... (já fiquei com medo de alguma notícia ruim).
- Você acredita que ele me vendeu aquele carro, ou melhor, aquela coisa?
- Seu irmão fez isso com você? Ou melhor... que legal...
- Legal? Aquela coisa desmanchou comigo no meio da rua...
- Como assim, desmanchou?
- Desmanchando. Começou entrando uma aguaceira em baixo, depois os vidros das portas se soltaram, escutei um estalo e o assoalho se desprendeu da lataria, ele arriou comigo e tudo. Desmanchou. Vendi a quilo para um ferro-velho lá de Juiz de Fora.
Depois do fuinha tive muitos outros carros, inclusive chevettes. Tive bons e ruins, novos e velhos, mas, confesso: se os objetos ganhassem alma ou pudessem ser invadidos por elas, creio que o fuinha, se teve uma alma, está no céu agora. Ele parecia gente. Parecia me conhecer. Fazia-me passar vergonha, mas na hora “h” era valente. Foi com ele que tudo começou de verdade. Na profissão, no namoro, na família que criei.
Em tempo: consegui pagar o banco e meu pai. O banco, com todos os juros possíveis. O pai, bem, ele só me pediu para dar a metade, sem juro, sem nada, a uma das irmãs, para não favorecer um filho só. E minha avó, que me deu o dinheiro faltante, bem... essa não sei como agradecer, pois está no céu há muito tempo, mas ainda teve tempo de passear no furrequinha do neto.

* bograxoleolina: cheiro misturado de borracha, graxa, óleo e gasolina.







4 comentários:

  1. Eu tenho e uso diariamente um siena 2004 sem ar nem direção. To louco pra torcar, mas sem grana e com parcelas ainda a pagar. Depois de ler o seu artigo estou suuuuuuuuper contente com o meu carro e acho que passarei muito calor dentro dele ainda. Sem ressentimentos. E ele que se desmanche nas mãos dos próximos.
    Abs e parabéns! Muito bom seu texto.

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  2. Conheço essa hostoria...mas eh sempre bom ler de novo...ahahaha

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  3. Bom, para quem conhece o autor e a família...tá ótimo seu causo. Só os carros do Titona se comparam ao seu fuinha. Abraços.

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  4. Puts Jairo, me fez flembrar do meu primeiro carro, um Fusca 1500/73; branco o qual chamava de Sylver o cavalo branco do Zorro e eu seu fiel motorista Tonto!!! Sempre Tonto!! kkkkkk
    Uns chamavam meu fusca de lazanha, pois só tinha massa.
    Mas te confesso que tenho saudades!!
    Um grande abraço!

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